terça-feira, 30 de abril de 2013



A crazy old man + the Other Mother eating some sort of beetle. Yum!

La Jetée


Vinte e oito minutos apocalípticos. Uma história de viagens no tempo na qual a tragédia pessoal colide com o destino da humanidade. Tudo narrado em uma voz emoff que guia o espectador através de uma sucessão de fotogramas fixos gravados em película de 35 mm preto e branco. Definido pelo autor Chris Marker como umafotonovela, La Jetée é na verdade um estranho híbrido metatextual que mistura cinema, narrativa, documentário e fotografia, um experimento único que nada tem a ver com as fotonovelas populares nos anos cinquenta. O filme do diretor francês é ambientado em um indefinido futuro próximo no qual a terra devastada por uma Terceira Guerra Mundial foi contaminada por um holocausto nuclear onde os poucos sobreviventes conseguem sobreviver apenas em galerias subterrâneas como ratos no subsolo de uma Paris reduzida a ruínas. Neste cenário, alguns cientistas procuram uma solução para a catástrofe já ocorrida através do único caminho deixando em aberto, o tempo.




Em La Jetée, um homem, um “herói” sem nome, prisioneiro depois da derrota na guerra é submetido a dolorosos experimentos que, através de contínuas injeções de drogas deveriam levá-lo para o passado unicamente através de sua mente. O homem, escolhido por sua grande capacidade imaginativa, recorda com clareza um episódio de quando era criança no período pré bélico: a plataforma do aeroporto deOrly, o rosto de uma mulher, um homem que corre e depois cai morto. As drogas injetadas pelos cientistas que sussurram em alemão escorrem dolorosamente em suas veias e as imagens começam a se suceder, uma após a outra, primeiramente tão concretas como uma miragem no deserto, mas gradualmente, o passado começa a tomar forma, tornando-se assim o presente do viajante. “No décimo dia, as imagens começaram a fluir como confissões. Uma manhã tranquila, um quarto tranquilo, um quarto de verdade. Crianças de verdade, pássaros de verdade, gatos de verdade, túmulos de verdade.” O homem é oprimido pela matéria que se concretiza em um tempo de paz, o qual existia somente através de recordações de infância, e da mesma forma na qual afloram as recordações, este mundo começa a surgir: do interior do viajante, como de fato, uma confissão.






Como confissões“, ou como uma íntima certeza guardada e escondida no seu interior. E ao externar a verdade interior, as imagens que fluem da mente do viajante se tornam a concreta realidade externa. O mundo de paz não é mais apenas uma recordação, mas real e concreto em toda sua banalidade feita de quartos, crianças, pássaros, gatos e túmulos. Um banalidade que evoca a emoção de quem se lembrava delas apenas como uma distante recordação. Desta forma, na dinâmica entre realidade interna e realidade externa, entre a variedade das recordações e a variedade da experiência, a imaginação criadora dá a luz um mundo perdido enquanto os sussurros ao fundo fluem ciclicamente através de uma frase em alemão quase como um mantra que os cientistas repetem e que se arrasta para o novo mundo. Esta é uma clara crítica à fracassada e paradoxal ideologia do regime deVichy, que Marker introduz na obra delineando a relação vencedores/vencidos como cientistas/cobaias, ou melhor, sujeito/objeto em um equilíbrio desbalanceado em relação aos primeiros, que queriam induzir o nascimento do novo mundo através de um trabalho penoso para as vítimas e derrotados.

A representação alegórica do regime alemão na França durante a Segunda Guerra mundial e a ideia de recurso dos eventos históricos não limita as possibilidades deLa Jetée, como também não a insere em um discurso filosófico que atravessa toda a história do pensamento ocidental, mas confere a Marker um polissêmico e multifacetado estrato cultural do qual emerge com força a ideia produtiva que o diretor faz da imaginação. Acentuando, de fato, as principais características que atribuía à imaginação de Sartre, com quem Marker havia estudado filosofia. O diretor francês encena o teatro da consciência, a força que emerge de tais atos não somente conectados à realidade do pensamento, como também ao mundo externo, podem aniquilá-lo ou regenerá-lo.



Mas agora a destruição e a gênese dos mundos imaginados vai além do ato mental que os coloca enquanto existentes: a imaginação de Marker se mostra como uma ponte entre a existência do pensamento e a existência real externa que promove a torção de um sobre o outro espiralando os diversos ciclos através dos quais a película é estruturada. Da mesma forma,  Marker inclui o paradoxo inerente a qualquer conceito de viagem no tempo e se utiliza dele para fechar o mundo de em um circulo perfeito que aprisiona os personagens em um loop que não lhes permite nenhuma saída. A humanidade teve que esperar até os anos oitenta para que o físico teórico russo Nikolai Ivanovich Novikov anunciasse seu “Princípio da Auto consistência“, o mesmo que o diretor francês já demonstrava em La Jetée desde 1962, ou seja, a impossibilidade de modificar as acontecimentos do passado através de viagens no tempo.

A necessidade permeia o universo de Marker sem conceder nenhuma escapatória. A célebre citação do Vertigo hitchcockiano se encaixa nesse contexto. Mesmo que a viagem no tempo acontecesse tanto no passado quanto no futuro, não mudaria em nada a  liberdade do indivíduo, obrigado a determinar o próprio destino e o do mundo como ele é e não como seria. A frieza imperativa do silogismo temporal conduz implacavelmente o homem ao encontro de sua própria morte, uma morte já postulada e guardada na imagem que abria o filme, imagem que o homem vivamente conservava desde sua infância. É um labirinto circular este cósmico drama da memória no qual o homem é lançado em direção a sua morte a partir da coincidência de duas imagens, da colisão entre dois mundos. KafkaBorges e Proust são os grandes escritores nos quais o diretor se inspira com esta obra para criar uma narrativa tão irregular como as ondas da memória.

Com o frieza do ritmo de um documentário as imagens se sucedem. A memória, na época de sua reprodutibilidade técnica, se articula em processos não muito diferentes das técnicas fotográficas que congelam um instante e um assunto e os objetivam como uma estátua ou um animal empalhado a serem admirados em um museu. As fotos, de fato, anulam o movimento espacial deixando o campo aberto para as mudanças temporais e suas conceitualizações até o inquietante êxtase de um piscar de olhos. Assim, até a relação do viajante com a mulher que encontra no passado se congela fotograficamente: “Eles estão sem memórias, sem planos. O tempo se construiu indolor ao redor de ambos. Suas únicas marcas são o sabor do momento que estão vivendo“. A imortalidade absorve tudo e se torna a personificação de uma vida assombrada por imagens. Marker vai ainda mais fundo na dissecação do nó “imagem e memória” no documentário Sans Soleil, de 1983, em uma reflexão em campo aberto sobre o homem e sua natureza social que se articula através da gramática da imagem/memória. Outra obra muito interessante do diretor francês que resulta em uma espécie de “teoria do esquecimento” com requintes nietzscheanos.


Como já dito, La Jetée de Chris Marker é um experimento único, uma nova forma de cinema que se vale do estilo do documentário para narrar uma ficção, e inspirou muitos diretores e artistas: Peter Watkins e seu interessante Punishment Park, de 1971; Werner Herzog, com Lessons of Darkness (Lições da Escuridão), de 1992, entre tantos outros exemplos do diretor alemão; Terry Gilliam com Twelve Monkeys(Os 12 Macacos), de 1995 e até James Cameron com seu exterminador do futuro. No campo musical, alguns videoclipes também se renderam ao fascínio de La Jetée, como Jump They Say, de David Bowie e In Fiction, do grupo post-metal Isis, para enfim chegar até Lung Boonmee Raluek Chat (Tio Boonmee, que Pode Recordar Suas Vidas Passadas), do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, vencedor do Palm D’Or no Festival de Cannes em 2010. A força da obra que Chris Marker nos entregou é perturbadora: em vinte e oito minutos que estruturam uma matéfora da consciência humana, ou melhor, uma matafora da condição humana na suspensão entre o sonho e a realidade, um pesadelo labiríntico onde não há escapatória.


Kurt Halsey Frederiksen é um artista americano de 32 anos.

Sua arte, que combina vários elementos como lápis, pincel e nanquim, se destacaram por sua simplicidade e leveza, demonstrando clara timidez e introversão com muita expressividade e charme. Os trabalhos de Halsey retratam sentimentos como tristeza, introversão, depressão, medo, mágoa, e principalmente, amor.


Suas influências? Segundo ele mesmo: “Influenciado pela minha mente super sensível e perdidamente romântica, eu presto atenção demais nas pequenas coisas da vida e nas relações entre duas pessoas. Na necessidade constante de reafirmação, explicação, proximidade e atenção, minhas pinturas são feitas”. Alguns trabalhos de Kurt Halsey podem ser conferidos em seu site oficial: acesse clicando aquiNesse Photobucket estão disponíveis vários de seus trabalhos mais antigos, como pinturasdesenhosentre outros.




segunda-feira, 22 de abril de 2013


hai kai urbano


hai kai urbano


hai kai urbano






O olhar do turista



sobre o espanto e a comparação



Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima




Canal Häuser em Torcello, ilha em Veneza, Itália
Foto Clemensfranz [Wikimedia Commons]

“(...) eu deixo os homens para me tornar, novamente, turista, para encontrar a rainha Albermale e as pedras.
La reine Albermale ou le dernier touriste. Jean-Paul Sartre

Introdução
Todo gênero literário guarda as suas especificidades e apresenta os seustopoi particulares, e com a chamada narrativa de viagens ou narrativa viática isso não poderia ser diferente. Ora, nessa espécie de subgênero responsável por narrar os périplos de um viajante-escritor, os procedimentos literários mais comuns são a evocação do estereótipo e do exotismo, o dépaysement (1) que o viajante afirma sentir e o espanto diante do desconhecido; por outro lado, é o seu procedimento narrativo mais habitual a comparação do que se vê, e que é percebido como surpreendente, com o que já se conhece. E não estaríamos longe da verdade se afirmássemos que tudo isto é tanto artificial – afinal, não podemos esquecer que arte é artifício – quanto natural: um viajante que, por exemplo, não se espantasse com certos hábitos e paisagens desconhecidas seria blasé demais colocar-se em movimento e iniciar uma viagem.
O objetivo desse artigo é analisar em um texto de caráter viático um topospreciso, o espanto, e um procedimento literário particular aqui já citado, a comparação. O livro por nós escolhido para realizar a tarefa proposta é o romance escrito pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre e intitulado La reine Albermale ou le dernier touriste; contudo, para a redação desse artigo utilizaremos apenas um breve trecho, um subcapítulo que tem como título apenas uma data, 27 outubro, indicando, certamente, que o texto foi escrito nesse dia – ou indicando que o autor quis que pensássemos assim, o que, para as nossas análises, faz bem pouca diferença. Convém acrescentar que esse livro jamais foi concluído e que foi publicado postumamente pela sua filha adotiva Arlette Alkaïm-Sartre, no ano de 1990 (2). Mas, de que trata esse romance inacabado? Para a fatura da sua narrativa Sartre criou uma personagem – na realidade um alter ego – que é um turista francês, um escritor-viajante que deambula pelas ruas das cidades italianas (Capri, Roma, Nápoles e Veneza) enquanto as descreve e realiza algumas considerações de ordem moral sobre os italianos, sobre a política e sobre o próprio caráter do turismo. (3)
Ora, ainda sobre a questão urbana, é mister afirmar que as cidades e a arquitetura têm um papel fundamental na construção dessas narrativas, e o filósofo britânico Bacon já fazia as suas recomendações aos viajantes, para que prestassem atenção na arquitetura das cidades: “(...) as igrejas e os mosteiros, com os monumentos e os documentos que por ventura conservem; as muralhas e fortificações das cidades e vilas; (...).” Esse curto extrato, que poderia ter sido escrito em um moderno guia de viagens, foi retirado de um ensaio chamado Da viagem, que foi publicado, pela primeira vez, no longínquo ano de 1597... Mas não devemos nos espantar ainda, uma vez que esse subgênero literário tem uma história que se confunde com a própria história de escritura.
Acreditamos que a análise desse subcapítulo será suficiente para os esclarecimentos sobre o “espanto” do turista francês diante de uma cultura que apenas muito vagamente se assemelha a sua (ambos os países, todavia, fazem parte do mesmo continente e têm uma história milenar de encontros e de guerras), e do procedimento da comparação, com o qual a personagem tenta compreender uma realidade que seria, de outro modo, quase incompreensível, e que, anteriormente, tinha sido motivo para espanto. Realizadas essas considerações iniciais, então, à tarefa.  
O espanto do turista
O turista francês, pretensamente no dia 27 de outubro (para os que gostam de precisão: Sartre escreveu o romance entre os anos de 1951 e 1952), atravessou a praça de São Marcos, em Veneza, para tomar o barco que o conduziria a Torcello aux Fondamenta Nuove (4), um endereço turístico nessa cidade tão turística que é Veneza. Contudo, uma vez no barco, a personagem, como todo bom turista, é tomada por um sentimento de estranheza e dedépaysement, uma vez que a classe social dos demais passageiros não era a sua – ele que era uma espécie de “burguês de esquerda” –, e ali quase todos eram operários voltando do trabalho: “Eu compreendo, todos esses homens acabaram de trabalhar. Eles vão para as suas casas para o fim de semana depois de terem comido as suas provisões na fábrica.” (5) A sua súbita compreensão do que significava aquele barco apinhado de venezianos veio acompanhada de uma – inevitável, ao menos para um turista – comparação: “O pequeno barco é um trem de subúrbio.” (6) Para um parisiense, aquele barco seria equivalente aos trens que, todas as noites, devolvem os operários aos seus subúrbios parisienses.
No entanto, as águas dos canais de Veneza não são o equivalente aos trilhos que sulcam parte do território francês, e isto é certo, porém, sabemos que a única arma do turista prevenido face ao perigo do desconhecido é a comparação: “Eu me retorno à água morta, esta que nos conduz. Ela é mais branca, porém, é mais reluzente que as águas dos canais do norte.” (7) Com essa comparação saímos subitamente do sul da Europa e somos lançados no espaço do norte, e não podemos deixar de pensar nos canais de Escaut, de Bruges e de Gent, na Bélgica. Ora, ali havia um canal, como no norte, havia a água, como no norte, mas a referência, para esse turista, não era Veneza, a referência eram os canais da Europa do norte, que, ainda segundo a personagem, não reluziam na pálida luz setentrional. Como se pode observar a partir da leitura desses poucos trechos, a comparação, como afirmamos no capítulo introdutório, é usual na literatura viática, e sobre esse procedimento escreveu a pesquisadora francesa Silvye Requemora:
A comparação do desconhecido de além mar com o conhecido europeu é também um procedimento clássico. Frank Lestrigant emprega a fórmula “mapa do mundo em palimpsesto” para qualificar esse fenômeno que consiste em comparar o desconhecido ao conhecido. O procedimento não concerne somente aos lugares e aos objetos, mas igualmente, aos modos observados; ele é recorrente, e mostra os limites da abertura do viajante à alteridade e o seu desejo de referencial. (8)
Mas a personagem, como veremos adiante, afirma não gostar nem um pouco de comparações... Mas, voltaremos a essa questão em tempo, nesse momento da análise é suficiente citar a narrativa de um evento que marcou o trajeto e que estruturou a narrativa desse subcapítulo: repentinamente, o turista francês percebe que um dos passageiros, um homem jovem, é tomado por convulsões violentas; e o seu mal foi prontamente diagnosticado pelos demais passageiros: tratava-se de um ataque epilético. A personagem, porém, mais se espanta com o comportamento dos demais passageiros que com as convulsões: “As pessoas ficam caladas. Eles olham. Não todos. Muitos ficaram sentados. Mas é um olhar estranho, sem escândalo nem surpresa: um olhar que mais reconhece do que vê.” (9) Aquele turista francês teria que atravessar muitas barreiras – sociais, culturais e históricas – para compreender o sentido daquele evento, que, para ele, era mais trágico do que o era para os demais passageiros. “Eu conheço o pânico das multidões burguesas quando alguém, no meio da rua, perde a sua dignidade e deixa de ser homem de direito divino para se tornar besta.” (10)
Ele constata que, no “norte”, diante de tal acontecimento as pessoas fingem não olhar (aquelas que são consideradas mais “humanas”), ou, então, olham com uma curiosidade sádica. Tratar-se-ia, nesse caso, de uma tragédia perfeitamente individual e vivida na solidão das ruas, mas fingir ignorar o sofrimento alheio não lhe parecia ser uma atitude reprovável, ou ainda, não seria a atitude mais reprovável, e ele comenta: “Entre nós, o melhor que um burguês pode fazer é ignorar e voltar a sua solidão, agir como se nada tivesse acontecido para que, mais tarde, o infeliz, se ele consegue retomar a sua dignidade, possa acreditar que ninguém percebeu a sua abjeção.” (11) Naquele barco, lotado de operários venezianos, essa tragédia é vivida de uma forma completamente diferente, pois se trata de um acontecimento da ordem do coletivo: “Mas aqui não tem essa solidão. A epilepsia pode atingir a todos.” Segundo o turista francês, há nisso certa resignação e certa renúncia: aceita-se essa doença como se aceita os acidentes de trabalho, a tuberculose dos filhos, e o cansaço; enfim, é algo que, simplesmente, acontece. (12)
Mas, como havíamos escrito acima, a esse turista não agradavam as comparações, como ele afirma: “Eu não gosto de comparações, no geral eu as acho insultantes, mas já que eu estou como turista direi que tive a mesma impressão singular – apenas mais forte – diante das telas de Duccio.” (13) Diante daquela cena, com o jovem convulsivo sendo amparado por outros, finalmente o turista francês permitiu-se uma genuína e confessada comparação. E neste caso, o motivo foi o espanto: “O que me choca naqueles que o seguravam, era o seu ócio triste.” (14) Aparentemente, face à exaltação da doença, um francês jamais faria esse gesto banal, quase cotidiano, como quem acalentasse uma criança doente, mas sem muito interesse  e pesar. Ao ousar vencer a sua solidão social para ter contato com um desconhecido, um francês, segundo a personagem, não teria, finalmente, um sentimento que poderia ser percebido como banal, ou um “ócio triste”.
Mais profundamente, a questão que se apresenta é a própria natureza do turismo, e, por conseqüência, dos turistas: poderia um turista, mesmo por um breve momento, deixar de ser um simples viajante e compreender verdadeiramente um acontecimento? Ora, o que é visto poderia, ao menos um dia, deixar de lhe escapar e, dessa maneira, deixar para trás a perpétua fuga do sentido diante do particular dos acontecimentos? A personagem tem essa sensação ao ser abordado por um “deles”, uma mulher que lhe pergunta pelo seu local de destino: “Você vai descer em Torcello? É lá.” Mas esse turista francês não tem muitas ilusões sobre o que ele representava, naquele momento, e, sobretudo, naquela viagem:
É uma maneira de me fazer sentir um pouco – no momento – um deles. No entanto, é claro que é ao estrangeiro de óculos, ao turista, que a mulher dá essa informação: ‘Ele só pode descer em Torcello,’ Eis o que ela pensou. Mas é como turista que estou, por um momento, ligado a eles. (15)
Ele não tem ilusões porque um burguês estrangeiro não pode se ligar a operários italianos senão como, exatamente, um turista. E esse viajante é o outro, o outro que compreende pouco e muitas vezes imprecisamente, ou que compreende apenas, como afirmou a personagem, no “insulto da comparação”. Dito de outra maneira, e ainda pensando no trecho citado: o outro que não pode conhecer a vida “deles” – a rotina de um operário italiano – e que do seu espaço só conhece os locais turísticos. Um bom turista deve seguir o secular conselho de Bacon, e visitar as cidades e os seus monumentos, e a operária veneziana sabia muito bem disso: “Ele só pode descer em Torcello”, eis como imaginou o turista estrangeiro o opróbrio de que se achava vítima por parte dos venezianos.
Mas tudo isto é apenas um breve resumo do romance que Sartre concebeu e não concluiu e um pequeno retrato desse “último turista”. E, apenas para concluir, mais uma breve análise sobre como a personagem serviu-se da comparação, e que, ao, comparar, acabou referindo-se a si mesmo e a sua cultura. Essa questão já estava presente na narrativa das convulsões, uma vez que a pintura de Duccio guarda mais relações com a cultura erudita e internacional do turista francês do que com o cotidiano de um operário veneziano. Essa questão, a saber, a quase impossibilidade de compreender uma cultura estrangeira foi brilhantemente formulada pelo pesquisador francês Daniel-Henri Pageaux nesses termos: “Eu quero dizer o Outro (por imperiosas e complexas razões), e em dizendo o Outro eu o nego e me digo eu mesmo.” (16) Em outras palavras, a alteridade cultural permanece um limite quase intransponível, e, ao descrevê-la, o viajante acaba por fazer um retrato de si mesmo e revelar a sua cultura. Trata-se da emergência dos “limites da abertura do viajante à alteridade”, tal como nos escreveu Requemora.        
E essa última comparação que faremos é a imagem que o turista francês possuía das mulheres italianas, que seriam “tão diferentes das francesas”: “As mulheres italianas mantiveram o natural de Sthendal.” (17) Ora, como o Sartre-autor teria criado a imagem de “natural” das mulheres italianas? Em princípio, podemos pensar que essa imagem foi evocada pela leitura dos romances “italianos” de Sthendal, como La chartreuse de Parme e Croniques italiennes. Isto significaria que esse “natural” seria somente uma construção cultural – que é, na realidade, mais francesa que italiana – e a frase da personagem indica que as mulheres italianas pareceram “naturais” a Sthendal, ou, ao menos, mais “naturais” que as francesas. Nesse caso, a personagem apenas fazia eco a um som emitido no século XIX, isto é, estaria reproduzindo, ou, repetindo, a imagem que certo romancista em dado período histórico teria criado.
Mas, aparentemente, ele sabia desse fato, desse hiato que separa, às vezes radicalmente, o turista de uma cultura visitada, e afirmou: “Quando eu vejo um homem estrito de cabelos penteados com austeridade e que representa oennui distinto dos fortes, homem de ação em repouso, eu penso que é um Francês. Nove vezes em dez eu acerto. Vistos da Itália, como nós parecemos nórdicos.” (18) O turista diz conhecer – e reconhecer – os Franceses, porque ele mesmo é Francês, e é sempre mais fácil reconhecer a sua própria cultura; todavia, para conhecer o “outro estrangeiro” um turista parece não possuir nada melhor que a “comparação insultuosa” ou, como nos casos já citados de Sthendal e de Duccio, a nobre criação artística.
Últimas considerações
Sartre criou uma personagem que, em um barco que atravessava os canais de Veneza, assiste a um evento que, de certa maneira, faz com que o turismo deixe de ser uma simples atividade de lazer para ganhar uma dimensão quase epistemológica, ou seja, tenta-se responder à questão – ou, ao menos refletir-la – do que se pode conhecer do chamado “real” quando o referencial já não mais existe. Vimos que o espanto é o arauto da “ausência de referências”, e que um turista possui um repertório de sensações, de imagens e de hábitos ao qual ele recorre quando, diante do desconhecido, tenta fazer um re-conhecimento. É assim, ainda sobre Duccio, o que afirma a personagem: “Como se nas telas naïves de Duccio estivesse uma humanidade católica e a sua acolhida fosse tão ampla que eu, turista francês e mais rico que eles, não pudesse ser excluído.” (19)
Mas toda comparação só pode ser aproximativa, e os homens e as cidades são inevitavelmente únicos e particulares, assim como os canais de Veneza não reproduzem os canais do norte da Europa, de águas menos “reluzentes”; e uma pintura do século XIV, insistimos, não pode emular uma cena ocorrida seis séculos depois. O turista reconhece a exatidão desse fato, e sabe que estará sempre solitário no seu espanto: “Mas isto não é o campo, é água condenada a ser terra, e também não é uma ilha, é uma coisa flutuante e inominável, um velho barco condenado que faz água por todos os lados e que vai naufragar.” (20) É com essa bela descrição de Veneza que o turista desiste das comparações – “não é o campo” – e que tenta, finalmente, compreender essa cidade, que não é nem água nem terra, mas um velho barco que um dia naufragará.  Contudo, essa cidade descrita não é a Veneza dos seus moradores ou a dos seus trabalhadores, trata-se de uma cidade pessoal e intransferível, criada por um turista francês que a compreende a partir da sua realidade e da sua cultura, e que, no final, será objeto de muitos adjetivos, mas que será sempre, assim como a própria personagem do romance, “inominável”.
notas
1
Dépaysement significa estar fora da sua região ou país, uma vez que o termo francês pays tem os dois significados. Uma tradução possível para o Português seria “desorientação”.

2
As razões para o abandono desse projeto literário ainda não foram elucidadas pelos seus biógrafos. A esse respeito, ver: a) CONTAT, Michel.Autopsie d'un livre inexistant : La Reine Albemarle ou le Dernier touriste. Em: Item [On line] Disponível em http://www.item.ens.fr/index.php?id=172593; b) COHEN-SOLAL, Annie. Sartre 1905-1980. Paris: Gallimard, 1999; c) LÉVY, Bernard-Henri. O século de Sartre. Trad.: Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

3
Esse personagem, ao longo desse romance inacabado, jamais será nomeado, e persistirá sendo somente um anônimo turista francês.

4
Em “Italiano” no original.

5
SARTRE, Jean-Paul. La reine Albermale ou le dernier touriste. Paris: Gallimard, 1991, p. 146. Tradução nossa do Francês para o Português.

6
Idem. Ibidem.

7
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 147. Tradução nossa do Francês para o Português.

8
REQUEMORA, Sylvie. L’espace dans la littérature de voyages. Em: Études Littéraires, v. 34, nº 1-2, 2002, p. 260. Tradução nossa do Francês para o Português.

9
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 149. Tradução nossa do Francês para o Português.

10
Idem. Ibidem.

11
Idem. Ibidem.

12
Idem. Ibidem.

13
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 150. Tradução nossa do Francês para o Português.

14
Idem. Ibidem.

15
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 152. Tradução nossa do Francês para o Português.

16
PAGEAUX, Daniel-Henri. Recherche sur l’Imagologia: de l’Histoire culturelle à Poétique. Em: Revista de Filologia Fransesa. Madrid: Universidade Complutense, 1995, p. 141. Tradução nossa do Francês para o Português.

17
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 159. Tradução nossa do Francês para o Português.

18
Idem. Ibidem.

19
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 151. Tradução nossa do Francês para o Português.

20
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 153. Tradução nossa do Francês para o Português.

bibliografia complementar
CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Les écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970.
FERNANDEZ, Bernard. L’homme et le Voyage, une connaissance éprouvée sous le signe de la rencontre.  Em: R. Barbier (Org.). Education et sagesse: la quête du sens. Paris: Albin Michel, 2001.
sobre o autor
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, autor do livro: Arquitessitura; três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo.



Algo existe




Emily Dickinson
Tradução de Lúcia Olinto


Algo existe num dia de verão,
No lento apagar de suas chamas,
Que me impele a ser solene.
Algo, num meio-dia de verão,
Uma fundura - um azul - uma fragrância,
Que o êxtase transcende.
Há, também, numa noite de verão,
Algo tão brilhante e arrebatador
Que só para ver aplaudo -
E escondo minha face inquisidora
Receando que um encanto assim tão trêmulo
E sutil, de mim se escape

Bisutería barata




Collar roto,
tus lágrimas dispersas

por el suelo ya frío
del recuerdo.


Little Red Ridinfhood



São Jorge

Chagas abertas, 
Sagrado Coração todo amor e bondade,
 o sangue do meu Senhor Jesus Cristo, 
no corpo meu se derrame hoje e sempre.
Eu andarei vestido e armado, com as armas de São Jorge. 

Para que meus inimigos tendo pés não me alcancem, 
tendo mãos não me peguem, 
tendo olhos não me exerguem e nem pensamentos eles possam ter para me fazerem mal.
Armas de fogo o meu corpo não o alcançarão,

 facas e lanças se quebrarão sem ao meu corpo chegar, 
cordas e correntes se arrebentarão sem o meu corpo amarrarem.
Jesus Cristome proteja e me defenda com o poder 

de sua Santa e Divina Graça, a Virgem Maria de Nazaré, me cubra com o seu Sagrado e divino manto, 
me protegendo em todas minhas dores e aflições, 
e Deus com a sua Divina Misericórdia e grande poder, 
seja meu defensor, 
contra as maldades de perseguições dos meus inimigos, 
e o glorioso São Jorge, em nome de Deus, 
 em nome de Maria de Nazaré, 
e em nome da falange do Divino Espírito Santo,
 me estenda o seu escudo e as suas poderosas anulas, 
defendendo-me com a sua força e com a sua grandeza, 
do poder dos meus inimigos carnais e espirituais 
e de todas sua más influências, 
e que debaixo das patas de seu fiel ginete, 
meus inimigos fiquem humildes e submissos a vós, 
sem se atreverema ter um olhar sequer que me possa prejudicar.
Assim seja com o poder de Deus e de Jesus e da falange do Divino Espírito Santo.
Amém.


Chegará um dia no qual os homens conhecerão o íntimo dos animais; e nesse dia, um crime contra um animal será considerado crime contra a humanidade."




Leonardo da Vinci