sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O paraíso nunca mais



Esta anta nadando ao lado da canoa no rio Peixoto de Azevedo é a prova de que o paraíso existiu e eu tive o privilégio de passar por ele. Durou pouco tempo mas eu vi. A anta mostrou a tromba a um metro do barco que eu viajava e a foto, quadro cheio, foi feita com uma lente normal. Ela não fugia espantada, apenas resolveu cruzar o rio ao lado da nossa canoa. Era carne de caça importante para alimentar os quase quarenta homens da expedição, mas todo mundo ficou assistindo imóvel a elegância das passadas do bicho naquelas águas cristalinas do rio Peixoto de Azevedo. Durante os quase três anos de expedição me senti como se estivesse assistindo aqueles encontros da bicharada reunida dentro da mata exuberante, num grande falatório como nos livros infantis.
beira dos igarapés amanheciam “picados” de rastro de pacas, veados, porcos do mato e, de vez em quando, no meio daquela pisação uma pata enorme provocava um suspiro de admiração e preocupação. Era a mão de uma onça que tinha vindo beber água. Rastro fresco de quem tinha acabado de chegar.

Muitas vezes tive a impressão de estar sendo cercado pelos bandos enormes, incontáveis, de macacos pregos que apareciam a nossa volta enquanto caminhavamos. Jacus e mutuns sobrevoavam o acampamento no amanhecer e a nossa trilha sonora de todos os finais de tarde eram as araras gritando até a última luz do dia.


O extremo norte do Brasil com seus encantos e desencantos



O jáu que estes dois índios Kaiabí estão segurando deve pesar uns 30 quilos e foi o primeiro peixe de couro pescado no Rio Peixoto de Azevedo pelo pessoal da expedição de contado dos índios Kranhacãrore chefiada pelos irmãos Villas Boas. Foi fisgado no final da tarde do dia em que a expedição encontrou o rio, quase um ano depois de ter partido a pé da Serra do Caximbo. Na chegada quase não se via o rio, de barranco alto, ficava escondido por trás da mata densa. Uma enorme árvore foi derrubada dentro da água. Caminhando pelo tronco pudemos ter uma idéia do rio, tomar banho e pescar. O índio Kanízio, cozinheiro da expedição, que esta a esquerda na foto, amarrou um pedaço de pano no anzol de uma linhada de mão e arremessava recolhendo de forma que o pano viesse chacoalhando na flôr da água. Piranhas enormes e pretas atacavam a isca na superfície.

Assim que escureceu o índio Tariri espetou um rabo de piranha no anzol e lançou rio abaixo. Não demorou muito e ele pegou este jaú, que o puxou para dentro d’água, ele voltou para cima do tronco com ajuda de outros índios com a linha na mão e o jaú fisgado, lutou, caiu no rio novamente, foi uma festa, a festa de chegada ao rio. Até aquele momento a expedição só se alimentava de carne de caça e o charque que raramente era lançado de avião. A comida desta primeira noite foi um banquete inesquecível. Todas as piranhas pescadas foram cozidas, tomamos o caldo, comemos com farinha.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Na praia, sozinho, à noite



Na praia, sozinho, à noite,
Quando a velha mãe balança para a frente e para trás,
[entoando sua canção vigorosa,
Quando assisto à brilhante estrela que cintila,
[reflito sobre a chave dos universos e sobre o futuro.

Uma vasta similitude engrena todas as coisas,
Todas as esferas, as desenvolvidas, as mirradas, as pequenas,
[as grandes, os sóis, as luas, os planetas,
Todas as distâncias de lugares, não importando quão longínquos,
Todas as distâncias do tempo, todas as formas inanimadas,
Todas as almas, todos os corpos viventes embora tão diferentes,
[ou de mundos diferentes,
Todos os processos gasosos, aquáticos, vegetais, minerais,
[os peixes, as criaturas,
Todas as nações, cores, barbarismos, civilizações, línguas,
Todas as identidades que existiram ou possam existir
[neste globo ou em qualquer globo,
Todas as vidas e mortes, todo o passado, o presente, o futuro,
Essa vasta similitude os abarca, e sempre os abarcou,
E há de abarcá-los para sempre e solidamente envolvê-los e contê-los.

(de Folhas de Relva,
livros: Filhos de Adão, Cálamo e À Deriva do Mar)

Walt Whitman (1819-1892)

Mont Saint Michel

Mas lembre-se ... a vida sente a si mesma.

Enigmas

Me tendes perguntado que fia o crustáceo entre
as suas patas de ouro e vos respondo: O mar o sabe.
Me dizeis o que espera a ascídia em seu sino transparente?
Que espera? Eu vos digo, espera como vós, o tempo.
Me perguntais a quem alcança o abraço da alga Macrocustis?
Indagai-o, indagai-o a certa hora, em certo mar que eu conheço.

Sem dúvida me perguntareis pelo marfim maldito
do narval, para que eu vos responda
de que modo o unicórnio marinho agoniza arpoado.
Me perguntais talvez pelas plumas alcionárias que tremem
nas puras origens da maré astral?
E sobre a construção cristalina do pólipo tereis
embaralhado, sem dúvida
uma pergunta a mais, debulhando-a agora?
Quereis saber a elétrica matéria das puas do fundo?
A armada estalactita que caminha se quebrando?
O anzol do peixe pescador, a música estendida
na profundidade como um fio na água?

Eu quero dizer-vos que isto o sabe o mar,
que a vida em suas arcas
é vasta como a areia, inumerável e pura
e entre as uvas sanguinárias o tempo poliu
a dureza duma pétala, a luz da medusa
e debulhou o ramo de suas fibras corais
de uma cornucópia de nácar infinito.

Eu não sou mais do que a rede vazia que mostra
olhos humanos, mortos naquelas trevas,
dedos acostumados ao triângulo, medidas
de um tímido hemisfério de laranja.

Andei como vós escarvando
a estrela interminável,
e na minha rede, à noite, acordei nu,
única presa, peixe encerrado no vento.


(de Canto Geral, parte XIV: O Grande Oceano)

Pablo Neruda (1904-1973)

sábado, 24 de maio de 2014


Livro que faz um panorama geral dos estudos da Ayahuasca desde sua descoberta no mundo ocidental no século XIX até o início deste século. Organizado por Ralph Metzner, pesquisador de longa data na área de drogas psicodélicas tendo feito parte do grupo de estudos de Timothy Leary nos anos 60. Lembrando que algumas pesquisas feitas ainda nos anos 90 já são consideradas ultrapassadas, como a que se refere ao uso da Ayahuasca por pessoas que fazem uso de medicamentos antidepressivos. Segundo o pesquisador Jace C. Callaway isso desencadearia uma síndrome serotoninérgica que levaria à morte. No entanto, não existe nenhum relato sobre algo parecido, e levando em conta a quantidade de pessoas que fazem uso de tais medicamentos e a expansão do uso da Ayahuasca nos últimos anos, o fato já haveria de ter ocorrido, como comenta o psiquiatra Luís Fernando Tófoli no vídeo abaixo.



sábado, 17 de maio de 2014

A ABP - Associação Brasileira de Psiquiatria - publicou um manifesto contrário à legalização da maconha. O que se sabe é que essa opinião não é unânime e sim representa apenas uma parcela dos psiquiatras que são simpáticos à atual direção da associação, mas que no entanto agem como se representassem toda a classe. Essa diretoria parece estar fechada a outras opiniões. O que vemos na página deles no Facebook é a insistência em causar verdadeiro pânico sobre os malefícios da droga e assim justificando sua opinião. Alguns vídeos são postados contendo não mais que 4 minutos, como se esse fosse o tempo suficiente para mostrar que os doutores estão cobertos de razão. Um verdadeiro desserviço.


Abaixo um artigo publicado pela Folha de S. Paulo com o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, que tem claramente opinião contrária a ABP.

http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/01/1399951-luis-fernando-tofoli-enxugando-gelo-e-sangue.shtml

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Un chant d'amour - Jean Genet (1950)  

Adelaide - ou o que sobrou dela - do nosso amigo Peu.


A liberdade de ver os outros

 

Um dos escritores mais admirados de sua geração, o americano David Foster Wallace se suicidou no mês passado, aos 46 anos, enforcando-se. Este texto foi tirado de seu discurso de paraninfo para formandos do Kenyon College, há três anos
por David Foster Wallace

Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

- Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

- Água? Que diabo é isso?

Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa -forma, a frase soa como uma platitude - mas
é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras "virtudes". Essa não é uma questão de virtude - trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.

Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica - pelo menos no meu caso - é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.

Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de "ensinar os alunos como pensar" é, na verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. "Aprender a pensar" significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.

Lembrem o velho clichê: "A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível." Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão - a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.

Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.

Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um "boa noite, volte sempre" numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim - só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.

Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação "inferno do consumidor" não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.

Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como "não venerar". Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar - seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio - e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.

No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas - e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto é água."

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-25/despedida/a-liberdade-de-ver-os-outros

domingo, 13 de abril de 2014

Ro Steinke por Rafael Tenório



Maradona por Kusturica (Emir Kusturica, 2008)

Kusturica por Maradona




O que podemos chamar de objeto óbvio do documentário em questão
seria, em qualquer lugar do mundo, polêmico e provocativo. No Brasil, então, o grau de provocação é
elevado à quinta potência, afinal, não há como negar: Maradona foi, é e será um eterno causador de
discórdias, que divide torcedores entre a adoração e a execração. Contribuindo com essa visão, o diretor
iugoslavo Emir Kusturica trata o tema de forma parcial, ovacionando seu ídolo de forma cega, quase
ingênua, como se os defeitos do jogador fossem também suas qualidades, elementos de um conjunto de
pré-requisitos que fazem de Maradona o melhor jogador do mundo.
Se algum brasileiro concorda com essa visão, tenho confiança de que jamais assumiria isso, talvez nem
mesmo para si, mas aquiescer com esse ponto de vista não é importante para apreciar esse filme. Ele
cativa, pouco a pouco, fazendo com que o espectador abandone gradualmente o sentimento de indignação
para simpatizar-se com o diretor, com a narrativa e com o próprio jogador.
Kusturica utiliza animações, registros quase encenados para a câmera sem a presença do diretor, imagens
de arquivos e, principalmente, entrevistas e registros intermediados por Emir Kusturica, costurando uma
trajetória de vida conturbada. Ao buscar seu tema, o diretor parece uma criança, nervosa e ansiosa pelo
encontro com seu ídolo, enquanto o jogador, embora fale de forma aberta sobre assuntos como o gol de
La Mano de Dios, parece contar uma história batida e quase encenada, sem muita espontaneidade ou
simpatia.



Kusturica constrói Maradona como um revolucionário que escolheu o esporte como forma de expressão,
“o Sex Pistols do futebol”, que experimentou todo o tipo de diversão e autodestruição, renascendo das
cinzas, com uma abordagem ingênua e incômoda, como a demonstração de um fanatismo infantil que se
constrói através de uma parcialidade óbvia. Um dos encantos do filme, no entanto, está no avançar da
relação de Kusturica e Maradona, quando ela se estreita e o jogador parece deixar de encenar enquanto
expõe idéias e facetas que ganham a simpatia do espectador. Ao mesmo tempo, o diretor abandona a
visão de adoração de um ídolo e passa a admirar o homem que está diante dele, tanto pela trajetória
profissional quanto, principalmente, pela trajetória de vida. E dessa forma, engraçado, sincero,
provocador e ágil, Maradona revela ser mais um showman do que um jogador de futebol, um
revolucionário, ou um Deus.
No entanto, por mais óbvio que pareça ser o objeto do filme, percebemos ao longo dele que o jogador
argentino é um pretexto para que Emir Kusturica trabalhe seu real tema: ele mesmo. Intitulado, nos
primeiros segundos do filme, como “o Diego Armando Maradona do mundo do cinema”, ele compara a
vida profissional e pessoal do jogador com seus filmes e personagens, mostrando equivalências e
cogitando a possibilidade de Maradona ter interpretado não um, mas todos eles. Exibindo trechos de
filmes como Underground (1995) e Gato Preto, Gato Branco (1998), Kusturica revisa a sua obra,
transformando o documentário sobre o jogador em um manual de sua filmografia. Ele usa Maradona para
tratar de seus sentimentos, de suas angústias e de seus posicionamentos a respeito de seus filmes,
reafirmando a idéia de Samuel Butler de que toda a obra de um homem é sempre o seu auto-retrato.


*Natália Vestri é graduada em Audiovisual no Centro Universitário Senac.



boneca do Egito Antigo

O homem na multidão [Edgar Allan Poe]


"Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul."

[La Bruyère]


De certo livro germânico, disse-se, com propriedade, que "es lässt sich nicht lesen" - não se deixa ler. Há certos segredos que não consen-tem ser ditos. Homens morrem à noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores fantasmais, olhando-os devotamente nos olhos; morrem com o desespero no coração e um aperto na garganta, ante a horripilância de mistérios que não consentem ser revelados. De quan-do em quando, ai, a consciência do homem assume uma carga tão den-sa de horror que dela só se redime na sepultura. E, destarte, a essência de todo crime permanece irrevela-da.

Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do Café D. . . em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescen-ça e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o opos-to do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. O simples res-pirar era-me um prazer, e eu deri-vava inclusive inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição. Sentia um calmo mas inquisitivo interesse por tudo. Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, divertira-me durante a maior parte da tarde, ora espian-do os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas.

Essa era uma das artérias prin-cipais da cidade e regurgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multi-dão engrossou, e, quando as lâmpa-das se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfi-lavam pela porta. Naquele momen-to particular do entardecer, eu nun-ca me encontrara em situação simi-lar, e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar aten-ção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.
De início, minha observação as-sumiu um aspecto abstrato e gene-ralizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblan-te e expressão fisionômica.
Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompu-nham-se e continuavam, apressa-dos, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e ges-ticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço, interrompiam subita-mente o resmungo, mas redobra-vam a gesticulação e esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam deti-do passassem adiante. Se alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão.
Nada mais havia de distintivo sobre essas duas classes além do que já observei. Seu trajes perten-ciam aquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, nobres, comerciantes, pro-curadores, negociantes, agiotas - os eupátridas e os lugares-comuns da sociedade -, homens ociosos e ho-mens atarefados com assuntos par-ticulares, que dirigiam negócios de sua própria responsabilidade. Não excitaram muito minha atenção.
A tribo dos funcionários era das mais ostensivas, e nela discerni duas notáveis subdivisões. Havia, em primeiro lugar, os pequenos funcionários de firmas transitórias, jovens cavalheiros de roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem em-plastado e lábios arrogantes. Posta de lado certa elegância de porte, a que, à falta de melhor termo, pode-se dar o nome de "escrivanismo", a aparência deles parecia-me exato facsímile do que, há doze ou dezoito meses, fora considerada a perfeição do bon ton. Usavam os atavios des-prezados pelas classes altas - e isso, acredito, define-os perfeitamente.
A subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitá-veis era inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas, confor-táveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha direita afastada devido ao hábito de ali prenderem a caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para pôr ou tirar o chapéu e que traziam relógios com curtas corren-tes de ouro maciço, de modelo anti-go. A deles era a afetação da respei-tabilidade, se é que existe, verda-deiramente, afetação tão respeitá-vel.
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Havia muitos indivíduos de apa-rência ousada, característica da raça dos batedores de carteiras, que infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita curiosidade e achava difícil imaginar que pudes-sem ser tomados por cavalheiros pelos cavalheiros propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas, assim como o ar de excessiva franqueza que exibiam, era quanto bastava para denunciá-los de imediato.
Os jogadores - e não foram pou-cos os que pude discernir - eram ainda mais facilmente identificáveis. Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de veludo, o lenço fantasia ao pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do mais desatinado e trapaceiro dos rufiões às vestes escrupulosamente desa-dornada dos clérigos, incapazes de provocar a mais leve das suspeitas. Não obstante, denunciava-os certa tez escura e viscosa, a opacidade dos olhos, assim como o palor e a compressão dos lábios. Havia, ade-mais, dois outros traços caracterís-ticos que me possibilitavam identi-fica-los: a voz estudadamente hu-milde e a incomum extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes, em companhia desses velhacos, obser-vei outra espécie de homens, algo diferentes nos hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante. Podiam ser definidos como cavalheiros que viviam à cus-ta da própria finura. Ao que pareci-a, dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público: de um lado, os almofadinhas; de outro, os militares. Os traços distintivos do primeiro grupo eram o cabelo ane-lado e o sorriso aliciante; o segundo grupo caracterizava-se pelo sem-blante carrancudo e pela casaca de alamares.
Descendo na escala do que se chama distinção, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias. Encontrei judeus mascates, com olhos de falcão cinti-lando num semblante onde tudo o mais era abjeta humildade; atrevi-dos mendigos profissionais hostili-zando mendicantes de melhor apa-rência, a quem somente o desespero levara a recorrer à caridade notur-na; débeis e cadavéricos inválidos, sobre os quais a morte já estendera sua garra, e que se esgueiravam pela multidão, olhando, implorantes, as faces dos que passavam, como se em busca de alguma consolação ocasional, de alguma esperança perdida; mocinhas modestas vol-tando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais choro-sas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contato direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda idade: a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano, feita de már-more de Paros, mas cheia de imun-dícies em seu interior; a repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de jóias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igua-lar-se, no vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e indes-critíveis; uns, esfarrapados, camba-leando inarticulados, de rosto con-tundido e olhos vidrados; outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, de lábios grossos e sensuais, e face apopleticamente rubicunda; outros, ainda, trajando roupas que, em tempos passados, haviam sido ele-gantes e que, mesmo agora, manti-nham escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo firme, mas cujo semblante se mos-trava medonhamente pálido, cujos olhos estavam congestionados e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por entre a multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além des-ses todos, carregadores de anún-cios, moços de frete, varredores, tocadores de realejo, domadores de macacos ensinados, cantores de rua, ambulantes, artesãos esfarrapados e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies - tudo isso cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo-nos discordantemente os ouvidos e provocando-nos uma sen-sação dolorida nos olhos.
Conforme a noite avançava, pro-gredia meu interesse pela cena. Não apenas o caráter geral da multidão se alterava materialmente (seus aspectos mais gentis desapareciam com a retirada da porção mais or-deira da turba, e seus aspectos mais grosseiros emergiam com maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus antros todas as espécies de infâmias), mas a luz dos lampiões a gás, débil de início, na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascen-dência, pondo nas coisas um brilho trêmulo e vistoso. Tudo era negro mas esplêndido - como aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano.
Os fantásticos efeitos de luz le-varam-me ao exame das faces indi-viduais, e, embora a rapidez com que o mundo iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar mais que uma olhadela furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstan-te, que, no meu peculiar estado de espírito, eu podia ler freqüentemen-te, mesmo no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos.
Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subita-mente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua ex-pressão. Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de
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longe. Lembro-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzs-ch, e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do Demônio. Enquanto eu tentava, durante o breve minuto em que durou esse primeiro exame, analisar o significado que ele suge-ria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no meu espírito, as idéi-as de vasto poder mental, de caute-la, de indigência, de avareza, de frieza, de malícia, de ardor sangui-nário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo terror, de intenso e su-premo desespero. Senti-me singu-larmente exaltado, surpreso, fasci-nado. "Que extraordinária história", disse a mim mesmo, "não estará escrita naquele peito!" Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apres-sadamente o sobretudo e, agarran-do o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a tur-ba em direção ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao cabo de algumas pequenas dificul-dades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-me dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção.
Tinha agora uma boa oportuni-dade para examinar-lhe a figura. Era de pequena estatura, muito esguio de corpo e, aparentemente, muito débil. Suas roupas eram, de modo geral, sujas e esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasional-mente, sob algum foco de luz, eu podia perceber que o linho que tra-java, malgrado a sujeira, era de fina textura, e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de se-gunda mão, que ele trazia abotoada de cima a baixo, de um diamante e de uma adaga. Essas observações aguçaram minha curiosidade, e decidi-me a acompanhar o estranho até onde quer que ele fosse.
Era já noite fechada, e uma ne-blina úmida e espessa, que logo se agravou em chuva pesada, amorta-lhava a cidade. Essa mudança de clima teve um estranho efeito sobre a multidão, que logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A agita-ção, os encontrões e o zunzum de-cuplicaram. De minha parte, não dei muita atenção à chuva; uma velha febre latente em meu organismo fazia com que eu a recebesse com um prazer algo temerário.
Amarrando um lenço à boca, continuei a andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu cami-nho, com dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava gru-dado aos seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça para trás, não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma travessa que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento. Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com maior hesitação, dir-se-ia. Atraves-sou e tornou a atravessar a rua repetidas vezes, sem propósito apa-rente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada, e ele caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes havia gradualmente decrescido, tornando-se o que é ordinariamente visto, à noite, na Broadway, nas proximidades do Park, tão grande é a diferença entre a população de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um desvio de rota levou-nos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe sobre o peito, enquanto seus olhos se movi-am inquietos, sob o cenho franzido, em todas as direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre a multidão com firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver que, tendo completado o circui-to da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes; quase que deu co-migo, certa vez em que se voltou com um movimento brusco.
Nesse exercício gastou mais uma hora, ao fim da qual encontra-mos menos interrupções, por parte dos transeuntes, que da primeira vez. A chuva continuava a cair, intensa o ar tornou-se frio; os pas-santes se retiravam para suas ca-sas. Com um gesto de impaciência, o estranho ingressou num beco rela-tivamente deserto. Caminhou a-pressadamente, durante cerca de um quarto de milha, com uma dis-posição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; grande foi a minha dificuldade em acompanhá-lo. Alguns minutos de caminhada leva-ram-nos a uma grande e ruidosa feira, cujas localidades pareciam bastante familiares ao estranho, e ali ele retomou suas maneiras pri-mitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem propósito definido, por entre a horda de compradores e vendedores.
Durante a hora e meia, aproxi-madamente, que passamos nesse local, foi-me mister muita cautela para seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava galochas e podia movimentar-me em absoluto silêncio. Em nenhum momento ele percebeu que eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de artigo algum nem dizia qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos com um olhar desolado, despido de qualquer expressão. Eu estava profundamente intrigado com o seu modo de agir e firmemen-
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te decidido a não me separar dele antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu res-peito.
Um relógio bateu onze sonoras badaladas, e a feira começou a des-povoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um es-barrão no velho, e, no mesmo ins-tante, vi um estremecimento per-correr-lhe o corpo. Ele saiu apres-sadamente para a rua e olhou ansio-so à sua volta, por um momento; encaminhou-se depois, com incrível rapidez, através de vielas, umas cheias de gente, outras despovoa-das, para a grande avenida da qual partira, a avenida onde ficava situ-ado o Hotel D... Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Estava ainda brilhantemente ilumi-nada, mas a chuva caia pesadamen-te e havia poucas pessoas a vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos pela antes popu-losa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção do rio. Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por fim diante de um dos teatros principais da cidade. Este estava prestes a fechar, e os espec-tadores saíam pelas portas escanca-radas. Vi o velho arfar, como se por falta de ar, e mergulhar na multi-dão, mas julguei perceber que a intensa agonia do seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o peito nova-mente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o caminho tomado pela maio-ria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia compreender a inconstancia de suas ações.
Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando, e sua antiga inquietude e vacilação volta-ram a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco fre-qüentada. O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápi-das passadas um itinerário que nos levou aos limites da cidade, para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então atravessa-do. Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais desesperado dos crimes. A débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e arruina-dos, dispostos em tantas e tão ca-prichosas direções, que mal se per-cebia um arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavi-mento jaziam espalhadas, arranca-das de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim de-paramos com grandes bandos de classes mais desprezadas da popu-lação londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como uma lâmpada bruxule-ante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente ao do-brarmos uma esquina, um clarão de luz feriu-nos os olhos e detivemonos diante de um dos enormes templos urbanos de Intemperança: um dos palácios do demônio Álcool.
O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de alegria, o ve-lho forçou a passagem e, uma vez dentro do salão, retomou suas ma-neiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a tur-ba. Não fazia, porém, muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna re-solvera fechá-la por aquela noite. Era algo mais intenso que desespe-ro o sentimento que pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia, retomou o caminho de vol-ta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não a-bandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses. Enquanto caminháva-mos, o sol nasceu, e quando alcan-çamos novamente a mais populosa feira da cidade, a rua do Hotel D..., esta apresentava uma aparência de alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E ali, entre a confusão que crescia a cada momento, persis-ti na perseguição ao estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante o dia todo, não abandonou o turbilhão da avenida. Quando se aproxima-ram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, deten-do-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido ven-do-o afastar-se.
"Este velho", disse comigo, por fim, "é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mer-cês de Deus que 'es lässt sich nich lesn' ".

moi!

Valentino

quinta-feira, 10 de abril de 2014

frida kahlo - Casa azul

O Rio Nu

No final do século XIX, o periódico O Rio Nu inaugurou o gênero pornográfico na imprensa brasileira

Rafaella Bettamio



“Toma tento, rapariga, chupa... chupa... não mastiga!” Seria esta citação pornográfica? Pode ser. O trecho faz parte de uma das edições de O Rio Nu: periódico semanal caustico humorístico e illustrado, que trazia para a sociedade carioca os prazeres da carne e mostrava uma cidade picante, irreverente, maliciosa e escrachada. Criado em 1898 e dirigido inicialmente por Heitor Quintanilha, Gil Moreno e Vaz Simão, O Rio Nu foi a primeira publicação da imprensa brasileira destinada exclusivamente ao público masculino. O sucesso foi tanto que o jornal logo passou a circular duas vezes por semana, e manteve-se ativo por dezenove anos. Recheadas de versos, contos e desenhos provocantes, suas páginas podem ser apreciadas na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional.


Criado na virada dos anos 1900, seu humor desregrado abordava certos aspectos do cotidiano e da intimidade dos casais que, em geral, a civilização da época julgava pecaminosos. Por trazer uma boa pitada de erotismo e sensualidade em suas colunas, o jornal apresentava ao público brasileiro um novo gênero jornalístico, o pornográfico. A ousadia de suas páginas deixou alguns leitores tão perplexos a ponto de burlarem a vigilância dos funcionários para rabiscar comentários a lápis como “pouca vergonha” ou “absurdo” em alguns dos exemplares pertencentes à Biblioteca.


Apesar disso, muitos se sentiam atraídos por esse conteúdo e apreciavam o “jornaleco”. Algumas seções contavam até com a participação do público, instigado pela imaginação pecaminosa e libertadora. Uma delas era o “Concurso de resposta”, no qual o jornal apresentava um tema em versos para que seus leitores completassem o poema para a redação. Como verdadeiros poetas, os fãs do periódico enviavam suas contribuições, identificados por pseudônimos – recurso também usado pelos próprios colunistas do jornal. As melhores poesias eram publicadas, e tinham sempre temas picantes:



Para o próximo número oferecemos a seguinte pergunta:



Se aquilo lavado fica

Como novo, novo em folha,

– Como diabo é que se explica

Esse receio da rolha?



A resposta vencedora foi publicada dois números depois:



Fica novo, novo em folha.

Desde que seja lavado.

Mas da razão não se esqueça:

Se da cabeça da rolha,

Depois do caldo entornado,

Nascer um’outra cabeça?...



Os vencedores também recebiam como prêmio alguns dos contos da Bibliotheca d’O Rio Nu, publicados em brochuras produzidas e vendidas pelo próprio periódico, sendo um sucesso de vendas e se tornando bastante popular entre o público masculino. Cada um de seus volumes, de leitura reservada,continha narrativas sobre as intimidades da vida sexual de casais, além de muitas gravuras“tiradasdonatural”, traçadas a partir da nudez de mulheres reais que posavam para seus desenhistas,detalhe sempre destacado pela propaganda desses livros, veiculada no próprio periódico. Histórias como “Sandwiche”, “69” e “O menino de Gouveia” – o primeiro conto homoerótico publicado no país –sedimentaram o gênero, também conhecido como “leitura quente”.



A capa de “Sandwiche” – lançado em 22 de abril de 1916 – instigava a imaginação do leitor ao estampar o desenho de um homem de braços dados com duas moças sorridentes. Um dos diálogos entre as personagens não poderia ser mais ousado para a época:



– Vamos, meu bem, não te faças de mauzinho.

– Mas, como há de ser isso? Como escolher entre as duas?

– Não te incomodes: serás o presunto e nós o miolo de uma nova sandwiche.



O jornal ainda divulgava o já popular jogo do bicho e dava palpites para combinações promissoras. As dicas do periódico faziam tanto sucesso entre os leitores que, a partir de 1915, elas passaram a ser vistas em um caderno suplementar, O Bichinho. Outra peculiaridade de O Rio Nu estava nos seus anunciantes, que viam o público assanhado do jornal como possível comprador de seus remédios ditos milagrosos contra doenças como Gonorrheas, Syphilis e Hemorrhoidas.

Com malícia, inteligência de sobra e sem abrir mão da classe, O Rio Nu saiu na frente ao perceber que sempre houve homens dispostos a encarar, regularmente, uma boa dose de pornografia na capital da República. Mais de um século depois que o jornal foi lançado, esse contingente não para de aumentar.

segunda-feira, 31 de março de 2014

"Frida vivia só. Quando a gente está só tudo parece nu e frio.
Frida tinha um dos olhos castanho e outro azul.
Nem mesmo o azul viu o azul do céu.
Herdara de sua mãe o castanho. De seu pai, nada.
Todos um dia dia tiveram mãe e pai.
Alguns perderam tudo: família, dinheiro, amigos.
Assim era Frida.
Para ela a cidade fora destruída. As árvores secaram.
O comércio é uma grande invenção:
podemos comprar roupas novas, reformar cadeiras, trocar objetos.
Com a vida também deveria ser assim...
Frida desejava comprar uma nova vida. Reformar ou mesmo trocar.
Mas Frida não conhecia ninguém.
Ninguém com quem pudesse trocar sua vida.
Os homens podem estar juntos, as ruas povoadas.
Gente, muita gente. Multidão.
Mesmo na multidão Frida estava só.
Todos estão juntos na terra.
Nesta terra em que todos se sentem isolados.
Frida não é um ser: Frida é solidão.
Dentro dos seres existirá sempre uma Frida."


Frida - Jocy de Oliveira

quinta-feira, 20 de março de 2014

domingo, 16 de março de 2014

Primeiros encontros
 
Todo instante que passávamos juntos
Era uma celebração, como a Epifama,
No mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um
pássaro,
Estonteante como uma vertigem, corrias escada
abaixo
Dois degraus por vez, e me conduzias
Por entre lilases úmidos, até teu domínio,
No outro lado, para além do espelho.

Quando chegava a noite eu conseguia a graça,
Os portões do altar se escancaravam,
E nossa nudez brilhava na escuridão
Que caía vagarosa. E ao despertar
Eu dizia, "Abençoada sejas!"
E sabia que minha benção era impertinente:
Dormias, os lilases estendiam-se da mesa
Para tocar tuas pálpebras com um universo de azul,
E tu recebias o toque sobre as pálpebras,
E elas permaneciam imóveis, e tua mão ainda
estava quente.

Havia nos vibrantes dentro do cristal,
Montanhas assomavam por entre a neblina, mares
espumavam,
E tu seguravas uma esfera de cristal nas mãos,
Sentada num trono ainda adormecida.
E — Deus do céu! — tu me pertencias.
Acordavas e transfiguravas
As palavras que as pessoas pronunciam todos
os dias,
E a fala enchia-se até transbordar
De poder ressonante, e a palavra ' 'tu''
Descobria seu novo significado: "rei".
Objetos comuns transfiguravam-se imediatamente,
Tudo — o jarro, a bacia — quando,
Entre nós como uma sentinela,
Era colocada a água, laminar e firme.

Éramos conduzidos, sem saber para onde;
Como miragens, diante de nós recuavam
Cidades construídas por milagre,
Havia hortelã silvestre sob nossos pés,
Pássaros faziam a mesma rota que nós,
E no rio peixes nadavam correnteza acima,
E o céu se desenrolava diante de nossos olhos.
 
Enquanto isso o destino seguia nossos passos
Como um louco de navalha na mão.

 
Arseni Tarkovski

sexta-feira, 14 de março de 2014

Envol is a sculpture by French artist Chésade.

Solarized (USA, 2001), by Christian Houge. 42 x 60 cm (16,5 x 23,6 in). Edition of 25.


Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza, sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mundo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados.

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania

Desculpa tendes, se valeis tão pouco;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco (BOCAGE)

quinta-feira, 13 de março de 2014



ENTRE A LITERATURA E A HISTÓRIA CULTURAL: CRÔNICA DE COSTUMES AMBIENTADA EM UMA ESTÂNCIA BALNEÁRIA.

Rosana Steinke


O instante em que os velhos sonhos afundam
com todas as superstições de outrora,
inclusive a da moral, na eclosão de uma vida frenética e admirável.
(João do Rio, discurso de posse na Academia de Letras, 1910)




1. O SURGIMENTO DAS CIDADES DO TEMPO LIVRE.
As estâncias balneárias, também chamadas cidades do tempo livre, são núcleos
urbanos que devem sua existência, por definição, aos prazeres do ócio, ao contato com a
natureza e à contemplação da paisagem, em muitos casos voltados a demandas curistas
(SICA, 1981). Ainda que não seja um campo amplamente explorado pela historiografia
em nosso país, é um tema que apresenta singular configuração para a história social.
Geralmente localizadas no litoral ou junto às montanhas, ou ainda em lugares onde se
encontram águas com propriedades terapêuticas, as cidades do tempo livre surgem a
partir do século XVII na Europa, à medida que a difusão da prática do veraneio começa
a se instaurar no seio da sociedade ocidental (CORBIN, 1989). Para compreendê-la,
segundo Corbin, é necessário compreender a gênese das leituras e das práticas novas da
paisagem que se opera nesse período, o que também implica compreender previamente
a coerência do feixe de representações que o antecede. Ou seja, as redes de
sociabilidade e o ritual de hospitalidade que se manifestam no seio da elite culta e
viajante, descobrindo a si mesma na Europa das Luzes, revela uma genealogia de
práticas bastante complexa, na medida em que modelos iniciais sofrem sucessivas reinterpretações
(CORBIN, 1989 e THOMAS, 1988).

A partir do início do século XIX, conforme percebemos nos estudos de Thomas
e Corbin, se esboça um modelo de organização cujo desenho e gênese permite um
processo mais amplo de ajustamento do espaço e pulsões. A prática da vilegiatura passa
a fazer parte das prescrições médicas, com a descoberta do Bromo e do Iodo e suas
qualidades farmacológicas, então valorizadas, na água do mar, bem como a prática do
banho terapêutico nas águas de estâncias termais. Associada à difusão de novos hábitos
em fins do século XVIII, a indústria do turismo vai se firmando ao longo do século
XIX, aliada ao desenvolvimento de um moderno aparato publicitário e à melhoria dos
transportes, tornando os lugares mais acessíveis aos moradores da cidade. Surgem na
Europa entidades locais, associações e organizações turísticas (SICA, 1981). Como
exemplos europeus clássicos de estabelecimentos de estação de cura, podemos citar
Vichy e Aix-les-Bains, na França, Karlsbad e Baden-Baden, na Alemanha, Buxton,
Brighton, Leamington e Cheltenham, na Inglaterra (CALABI, 2000). Entre os inúmeros
resorts pitorescos, é importante citar Bath, também na Inglaterra, descrita muitas vezes
como palco de uma comédia de costumes ocorrido neste processo de ajuste de estilos,
sendo de fato uma preocupação central da cultura literária do século XVIII (...)
(THOMPSON, 1993: 23).
Algumas destas estações balneárias serviriam de inspiração para realizações do
gênero em nosso país. É o caso da viagem do arquiteto Eduardo Pederneiras à Europa,
com o intuito de recolher exemplos de arquitetura e planos urbanísticos para Poços de
Caldas (ANDRADE, 1998 e LIMA, 2001).
Em tais locais a codificação de hábitos coletivos, o desdobramento de estratégias
de distanciamento e distinção, que ordenam o espetáculo social, duplicam-se em
profundidade com a elaboração de cuidados pessoais individuais relacionados a novos
esquemas de apreciação e engendram modelos inéditos de comportamento (THOMAS,
1988 e VEBLEN, 1998). Criados, num primeiro momento, como retiros para abrigar
pessoas adoentadas das diversas classes sociais, muitas vezes de caráter assistencialista,
apresentam-se como um refúgio. Contudo, a maneira de estar junto, a conivência entre
turistas, os signos de reconhecimento e os procedimentos de distinção condicionam
igualmente as modalidades de fruição do lugar (CORBIN, 1989). Em muitos casos,
(...) proteger os clientes das atividades importunas e da visão
incômoda dos miseráveis era uma das amenidades que as estações
de férias deviam providenciar. Desencorajavam-se pacientes pobres,
ou procurava-se afastá-los do centro elegante, em uma cidade após
outra; as facilidades, que antes tinham sido grátis ou mais baratas,
começavam a custar mais, até que um tratamento sério tornou-se
dispendioso para os realmente pobres. Pacientes necessitados,
agora admitidos como indigentes, tiveram seu número limitado, e
seu tratamento ficou restrito a horas especiais, a lugares especiais
de residências e freqüentemente a edifícios termais separados
(WEBER, 1998: 222).
Ou seja, o seletivo caráter social e excludente também se torna preponderante à
medida que cresce o turismo balneário.

Se as estações turísticas traziam oportunidades significativas a uma indústria
relativamente nova - a propaganda - o moderno aparato publicitário produzia, por sua
vez, uma gradual evolução, num primeiro momento com uma conotação burguesa e
depois se estendendo para as massas, com a difusão cultural de novas práticas de lazer,
colocando em movimento novos fenômenos sociais e produtivos (SICA, 1981). Tais
meios produtivos podem ser observados através da criação de redes viárias, saneamento,
entre outros investimentos, bem como na motivação de uma política de assistência
social incluindo colônias de sanatórios (GLAUS, 1975. Em seu estudo sobre as cidades
do tempo livre, na Europa e Estados Unidos, Sica demonstra como que, com o dinheiro
e o patrimônio públicos, se constrói a infra-estrutura necessária e se cria, ao menos em
parte, a propriedade privada. Esta apertada trama de conexões entre o poder público e a
iniciativa privada também pode ser observada na criação de cidades balneárias em nosso
país.

2. CIDADES DO TEMPO LIVRE NO BRASIL.
Na Europa a afluência de estações balneárias tornou-se mais freqüente nos
século XVIII e XIX, como um paralelo da ampliação dos efeitos da revolução
industrial, com a contaminação estética e higiênica da tradicional paisagem urbana O
Brasil, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, também foi
marcado por uma explosão do crescimento populacional, principalmente em algumas
capitais, não acompanhada pela infraestrutura urbana necessária, piorando as condições
de habitação da população, que buscava abrigo em cortiços, cuja precariedade facilitava
o aparecimento de surtos e epidemias. A criação de retiros de altitude e balneários pode
ser mapeada dentro de tal contexto sócio-histórico (PIRES, 2001). Também podemos
citar, conforme ressalta Sevcenko, a política da saúde, em vias de se tornar o esteio do
turismo e, posteriormente, o Estado Varguista e a instituição do direito geral ao repouso
anual. Observa-se a proliferação da cultura desportiva, na qual o desenvolvimento dos
esportes na passagem do século se destinava justamente a adaptar os corpos e as
mentes à demanda acelerada das novas tecnologias (SEVCENKO, 1998: 571).
Conforme crescia a necessidade de territórios específicos direcionados ao convívio
social e emergiam novas sensibilidades no seio de uma crescente elite, tais práticas
justificavam os conflitos sociais e a necessidade de media-los através da profilaxia, da
higiene e da eugenia, conforme ressaltam alguns estudos (CHALHOUB, 1996 e
SEVCENKO, 1984).

No Brasil, a formação das primeiras estâncias hidrominerais, ainda na segunda
metade do século XIX, está diretamente relacionada as tentativas de afastamento de
surtos epidêmicos urbanos e às práticas medicinais vinculadas ao termalismo. Podemos
dizer que a prática da vilegiatura, associada aos cuidados com o corpo, entre eles a
hidroterapia, comum na Europa desde o século XVIII, difundiu-se em nosso país
principalmente através de duas maneiras: pelas viagens de membros da corte para
estações termais em várias províncias do país e pela circulação de livros estrangeiros
que descreviam o comportamento da elite e os ambientes glamurosos das mais famosas
estações européias (STEINKE, 2002).

Embora houvesse conhecimento da existência de águas com propriedades
terapêuticas em nosso solo desde o século XVIII, foi só em 1808, com a chegada da
família real que se cria o hábito de freqüentar socialmente tais locais. As primeiras
análises com a finalidade de atestar as propriedades químicas e terapêuticas de fontes de
águas termais no Brasil foram realizadas a pedido da corte ainda em 1840. A partir de
então, membros da elite passaram a visitar e estabelecer residências de veraneio em
estâncias termais de vários pontos do país, entre eles Caxambu e Poços de Caldas, em
Minas Gerais, e Caldas de Imperatriz, em Santa Catarina. Datam também desta época os
primeiros investimentos públicos significativos em obras de urbanização e infraestrutura,
criando condições para a construção de hotéis e pensões, que por sua vez
impulsionaram o turismo (STEINKE, 2004).
Nos primeiros anos do século XX, as estâncias hidrominerais apresentavam-se
como núcleos prósperos, algumas como filiais das principais casas bancárias e
comerciais da capital e hotéis de excelente padrão, muitos dos quais passariam a ser
dirigidas por experientes profissionais europeus a partir de 1917, quando, por ocasião da
Guerra, o Brasil acolheu e incorporou os estrangeiros exilados como mão-de-obra
qualificada, em diversos setores (ANDRADE, 1998). Já na primeira década do século
XX a constituição de uma elite paulistana, cuja sociabilidade se espelhava nos costumes
franceses da época, freqüentadora dos salões de suirées no bairro de Higienópolis,
empreendia viagens à Europa, mas também dividia seu tempo com estadias na região do
Guarujá. A temporada no litoral constituía um espaço singular no qual se podia praticar
o footing a exemplo das estâncias hidroterápicas (SCHAPOCHNIK 1998).




3. POÇOS DE CALDAS, SOB O OLHAR CURIOSO DE JOÃO DO RIO.



As estâncias balneárias foram freqüentemente retratadas pela literatura ao longo
do século dezenove e século vinte adentro. De Poços de Caldas, em particular, como
estância de status privilegiado entre certa elite brasileira, nos primeiros anos do século
XX, destaca-se a obra do escritor João do Rio, A Correspondência de uma Estação de
Cura. O universo particular e a vida artificial das estações termais na Belle Epóque
brasileira, tão bem retratados por João do Rio em suas crônicas e romances, é fruto de
duas temporadas que o autor passou nesta cidade, a primeira em 1906 e a segunda em
1917. Nas duas ocasiões João do Rio explorou as particularidades do comportamento
humano e os ambientes típicos das estâncias hidrominerais – cassinos, hotéis de luxo,
balneários e paisagem natural – ironizando a vida anódina da burguesia e o caráter
artificial desse tipo específico de cidade, que almejava ser a Paris ou a Vichy nacional.
O escritor João do rio, observador atento das mudanças na paisagem urbana do
Rio de Janeiro, registrou a referida cidade em transformação, entre o esplendor das
vitrines e o horror dos escombros de uma cidade que se civiliza a duras penas, na qual
se move a humanidade boquiaberta com a rápida mudança de valores, de moral, de
mundo enfim (VALENÇA, 1992: 15). Suas crônicas sobre a capital federal de então,
são bastante conhecidas, no entanto, outra cidade ainda figura como tema de seus
escritos: a pequena Poços de Caldas, no interior mineiro. João do Rio visita Poços de
Caldas pela primeira vez em 1906, aos 25 anos de idade, para a qual viajou por
indicação médica. Da estância mineira, ao escrever reportagens com observações sobre
os hotéis de cura e seus hóspedes, faz um registro peculiar da sociedade brasileira da
época e de suas relações sociais, mostrando que, assim como na Europa, a invenção doslugares e das práticas do turismo, ainda elitista, é uma soma de histórias singulares
(BOYER, 2003: 40).



Voltaria novamente a Poços de Caldas uma década mais tarde e, nessa estada,
escreveria o romance A Correspondência de Uma Estação de Cura, crônica de costumes
ambientada na estância mineira, contada através de cartas trocadas entre os diversos
personagens. Podemos dizer que a narrativa de João do Rio é lugar de memória por
conter um registro de um determinado tempo e espaço. Conforme aponta Pesavento
(...) entendemos que a irreverência, o deboche e o absurdo são
também uma forma de expor o social, de desmontar uma ordem
estabelecida, de narrar as misérias da natureza humana. Sem dúvida
que, a partir de uma visão literária, poderíamos objetar uma
possível comparação, invocando que, conforme o gênero tratado,
pode ser maior ou menor o nível de aproximação com a realidade.
(PESAVENTO, 2000: 247).
Então, para essa autora, o que nos interessa, é ter em conta “as maneiras de dizer
o real”, as quais podem guardar uma porção de verdade e de ficção e que podem ter no
seu referencial a própria realidade, revelando, a seu modo, um lado oculto da vida e de
determinadas situações (PESAVENTO, 2000: 277-8). Em A Intimidade dos Hotéis de
Cura, João do Rio aponta:
Nos hotéis de cura quase sempre o gerente informa quem é o novo
hospede. É o coronel, o excelente coronel ou o doutor, o notável
doutor. Todos são doutores e são coronéis. Chega uma pessoa
cansada, cheia de poeira das locomotivas ou rancor de ter subida a
serra em liteira e, imediatamente, começa a agir a intimidade (RIO,
1992: 70).



Em sua narrativa é perceptível o entrelaçamento das relações sociais entre os
“iguais” e o que os torna próximos, íntimos, quebrando quase que imediatamente
algumas convenções. Provinha, essa tácita proximidade, da divisão de algumas
situações comuns por esses indivíduos, que permitia a sensação de pertencimento a uma
mesma origem ou classe social, como, por exemplo, dividir - senão os mesmos -
semelhantes meios de transporte, tipo de hospedagem, gama de atividades, o gosto por
determinado padrão de vestes, entre outros sinais enviados pelos turistas/curistas. Era
apenas preciso decodificá-los, pois os mesmos os distinguiam.
Segundo João do Rio, (...)dois dias depois, a gente tem a impressão de que vive
há anos no casarão do hotel. Já sabe todos os nomes, todas as histórias secretas, todas
as intimidades (RIO, 1992: 71). Por outro lado, era também a difusão por imitação.
Sobre o assunto, Boyer comenta, referindo-se sobre a Europa:
Imitação capilar, pois cada extrato copiava os comportamentos e as
escolhas da categoria imediatamente superior. Durante os dois
séculos de turismo elitista, o fato de ser turista, de passar uma
temporada em certa estação da moda, conferia um status. Cada vez
mais numerosas, as pessoas do de alta renda se valorizavam pelas
migrações sazonais que faziam nas estações lançadas (BOYER,
2003: 32)




João do Rio descreve, de forma igualmente mordaz, o ambiente dos cassinos e as
jogatinas que presenciava nos salões dos cassinos, entre outros ambientes:
Há decerto uma misteriosa afinidade entre as roletas e as cidades
das águas. Onde haja uma praia, uma fonte termal ou um jorro com
propriedades minerais, podeis ter a certeza que há também roletas:
e quando um homem vos disser, apalpando o estômago ou
consultando o crânio, a ver se ainda lhe restam cabelos: venho de
fazer minha cura! – afirmai com a condição de uma absoluta
verdade: que incorrigível roseteiro tem diante dos olhos! Cidade de
águas, - cidade de jogo, neste selvagíssimo Brasil, como na
Alemanha, como na França, como em Portugal (RIO, 1992: 47).
E conclui, em Santa Roleta. Confissões de “Ponto”: (...) Porque as cidades
d’água não vivem de curas, vivem do dinheiro que a roleta absorve dos curáveis – a
roleta (RIO, 1992: 47).
Ao descrever as noites nos cassinos, não poupa nem mesmo uma relação deste
com os pacientes de um consultório médico visitado por ele pela manhã. O autor em As
Sensações de um Dia, comenta sobre a visita ao médico:
Todos aqueles clientes, na luz pálida da manhã, tinham umas pobres
fisionomias dolorosas e crispadas. Alguns ajudavam o médico no
desejo de rapidamente receberem o curativo; outros conservavam o
rosto fechado, como conhecedores do próximo fim; outros ainda
guardavam qualquer cousa de mecânico no riso e no andar, um
passo de mola, um sorriso de fantoche (RIO, 1992: 62).
Já, no final desse mesmo artigo, se surpreende com o fato de encontrar os
pacientes em distintas circunstâncias, no cassino:
(...) e nesse pequeno paraíso de frivolidade e elegância, que a
civilização parece brunir de um verniz de conservação, os meus
olhos apavorados começam a encontrar os que eu vira no escritório
do Mestre pela manhã, os que me haviam comunicado secretas
coisas da própria vida; eram quase totalmente outros. A sociedade e
o convívio, o bendito desejo de agradar, que move o orbe, como que
os galvanizaram. Passaram por mim, esquecidos da manhã,
aparentemente sãos. (...) (RIO, 1992:66).



E, ao interrogar a um deles, sobre o fato de ver ali, inteiramente sãos, todos
aqueles senhores da manhã, obtém a seguinte reposta: - Mas o mundo é assim. O Hotel
da Empresa é uma redução do mundo.
O tom pedagógico presente no discurso dos guias de viagem também emergiu no
discurso terapêutico, no qual a idéia de progresso e higiene tinha alcance (QUINTELA,
M. M. 2004). Ir a locais privilegiados onde o prazer da estadia, por si só, levava à cura,
ou ao menos, ao alívio. O discurso higienista dava credibilidade à escolha das estações e
ao ritmo das temporadas, vistas mesmo como uma questão de saúde publica.
A relação entre a natureza e o ritmo de vida urbana incorporada pela elite
freqüentadora da estância também não escapa à perspicácia do autor. Na descrição de
um pic-nic que o mesmo teve a oportunidade de presenciar, observa que as senhorasdiscutiam moda; embora exclamassem “que beleza”, referindo-se a paisagem e os
cavalheiros, conversavam sobre política e as últimas notícias que chegavam através dos
jornais do Rio.
Segundo João do Rio
(...) Nenhum desses senhores olhava a riqueza azul do céu, nenhum
deles parecia sentir o ar fino ensopado de aromar. Em
compensação, cada cérebro era um repositório de histórias da vida
alheia. Conforme o grau social, podia-se catalogar naquele passeio
campestre uma série de biografia s de homens urbanos. (...) (RIO,
1992:78)
Assim, conclui:
Cada um de nós conversava do seu meio, mostrava as preocupações
do asfalto e da poeira, conservava a fisionomia composta com
esforço na cidade e com maior esforço lá sustentada. A natureza era
como um parente remoto e venerável de que se guarda o retrato a
óleo e de corpo inteiro no quarto dos cacaréus. (RIO, 1992: 80).
Ao retomar a observação de um senhor que descuidadamente ressalta o prazer de
se beber um vinho assim, sob as árvores: O cidadão nem olhara o local, nem vira que
de arvores só existia um exemplar triste e anêmico! (RIO, 1992: 82). Ou seja, a bela
paisagem era o fundo vago da fotografia na percepção daqueles homens.
A partir dos escritos de Correspondência de uma estação de cura é possível notar
que, se a natureza e a presença das fontes termais atuam como um atrativo. Por outro
lado, impõem-se, ao mesmo tempo, através das relações sociais estabelecidas, a
presença dos hábitos urbanos, através dos diálogos estabelecidos, das práticas da leitura
cotidiana do jornal, da vida noturna e ao se freqüentar os cassinos.
É a junção de vários aspectos, onde a insularidade geográfica, a perfeição
decantada da ordem espacial e social, conforme sugere Sica, oferece alguns traços
próprios da utopia da evasão, de um quase naturalismo romântico. Entretanto, assim
como na Europa e Estados Unidos, também em nosso território aparece vinculada
inevitavelmente às relações de produção vigentes, permitindo o consumo privilegiado.
Ironicamente, os mesmos atrativos que permitem que o local seja considerado
privilegiado para tratamentos de determinadas doenças e também para o descanso,
assumem um caráter urbano (através de reformas e melhoramentos que modificam a
paisagem), se tornando lugares padronizados para atenderem ao público que os
promovem. Tais características, alinhavadas aqui, formam um élan para se estudar a
história das cidades do tempo livre em nosso país.
Esse pequeno ensaio permite estabelecer uma relação entre a literatura e a
história, percebendo o turismo de estações balneárias através da difusão e apropriação
de modelos e a invenção da distinção. Tal estudo permite colocar a cidade como espaço
por excelência para a construção de significados e, nesse contexto específico a que nos
referimos no presente texto, o resgate da memória através da leitura da cidade do tempo
livre e de suas representações na obra A correspondência de uma estação de cura.