"Frida vivia só. Quando a gente está só tudo parece nu e frio.
Frida tinha um dos olhos castanho e outro azul.
Nem mesmo o azul viu o azul do céu.
Herdara de sua mãe o castanho. De seu pai, nada.
Todos um dia dia tiveram mãe e pai.
Alguns perderam tudo: família, dinheiro, amigos.
Assim era Frida.
Para ela a cidade fora destruída. As árvores secaram.
O comércio é uma grande invenção:
podemos comprar roupas novas, reformar cadeiras, trocar objetos.
Com a vida também deveria ser assim...
Frida desejava comprar uma nova vida. Reformar ou mesmo trocar.
Mas Frida não conhecia ninguém.
Ninguém com quem pudesse trocar sua vida.
Os homens podem estar juntos, as ruas povoadas.
Gente, muita gente. Multidão.
Mesmo na multidão Frida estava só.
Todos estão juntos na terra.
Nesta terra em que todos se sentem isolados.
Frida não é um ser: Frida é solidão.
Dentro dos seres existirá sempre uma Frida."
Frida - Jocy de Oliveira
segunda-feira, 31 de março de 2014
quinta-feira, 27 de março de 2014
domingo, 23 de março de 2014
quinta-feira, 20 de março de 2014
THINK!, é o primeiro disco do James Brown, ainda com uma pegada rock and roll. Adquirido no Blog do Nirso.
47 MB
domingo, 16 de março de 2014
Primeiros encontros
Todo instante que passávamos juntos
Era uma celebração, como a Epifama,
No mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um
pássaro,
Estonteante como uma vertigem, corrias escada
abaixo
Dois degraus por vez, e me conduzias
Por entre lilases úmidos, até teu domínio,
No outro lado, para além do espelho.
Era uma celebração, como a Epifama,
No mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um
pássaro,
Estonteante como uma vertigem, corrias escada
abaixo
Dois degraus por vez, e me conduzias
Por entre lilases úmidos, até teu domínio,
No outro lado, para além do espelho.
Quando chegava a noite eu conseguia a graça,
Os portões do altar se escancaravam,
E nossa nudez brilhava na escuridão
Que caía vagarosa. E ao despertar
Eu dizia, "Abençoada sejas!"
E sabia que minha benção era impertinente:
Dormias, os lilases estendiam-se da mesa
Para tocar tuas pálpebras com um universo de azul,
E tu recebias o toque sobre as pálpebras,
E elas permaneciam imóveis, e tua mão ainda
estava quente.
Havia nos vibrantes dentro do cristal,
Montanhas assomavam por entre a neblina, mares
espumavam,
E tu seguravas uma esfera de cristal nas mãos,
Sentada num trono ainda adormecida.
E — Deus do céu! — tu me pertencias.
Acordavas e transfiguravas
As palavras que as pessoas pronunciam todos
os dias,
E a fala enchia-se até transbordar
De poder ressonante, e a palavra ' 'tu''
Descobria seu novo significado: "rei".
Objetos comuns transfiguravam-se imediatamente,
Tudo — o jarro, a bacia — quando,
Entre nós como uma sentinela,
Era colocada a água, laminar e firme.
Éramos conduzidos, sem saber para onde;
Como miragens, diante de nós recuavam
Cidades construídas por milagre,
Havia hortelã silvestre sob nossos pés,
Pássaros faziam a mesma rota que nós,
E no rio peixes nadavam correnteza acima,
E o céu se desenrolava diante de nossos olhos.
Enquanto isso o destino seguia nossos passos
Como um louco de navalha na mão.
Como um louco de navalha na mão.
Arseni Tarkovski
sábado, 15 de março de 2014
sexta-feira, 14 de março de 2014
Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza, sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:
Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mundo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados.
Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania
Desculpa tendes, se valeis tão pouco;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco (BOCAGE)
Sem arte, sem beleza, sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:
Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mundo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados.
Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania
Desculpa tendes, se valeis tão pouco;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco (BOCAGE)
quinta-feira, 13 de março de 2014
ENTRE A LITERATURA E A HISTÓRIA CULTURAL: CRÔNICA DE COSTUMES AMBIENTADA EM UMA ESTÂNCIA BALNEÁRIA.
Rosana Steinke
O instante em que os velhos sonhos afundam
com todas as superstições de outrora,
inclusive a da moral, na eclosão de uma vida frenética e admirável.
(João do Rio, discurso de posse na Academia de Letras, 1910)
1. O SURGIMENTO DAS CIDADES DO TEMPO LIVRE.
As estâncias balneárias, também chamadas cidades do tempo livre, são núcleos
urbanos que devem sua existência, por definição, aos prazeres do ócio, ao contato com a
natureza e à contemplação da paisagem, em muitos casos voltados a demandas curistas
(SICA, 1981). Ainda que não seja um campo amplamente explorado pela historiografia
em nosso país, é um tema que apresenta singular configuração para a história social.
Geralmente localizadas no litoral ou junto às montanhas, ou ainda em lugares onde se
encontram águas com propriedades terapêuticas, as cidades do tempo livre surgem a
partir do século XVII na Europa, à medida que a difusão da prática do veraneio começa
a se instaurar no seio da sociedade ocidental (CORBIN, 1989). Para compreendê-la,
segundo Corbin, é necessário compreender a gênese das leituras e das práticas novas da
paisagem que se opera nesse período, o que também implica compreender previamente
a coerência do feixe de representações que o antecede. Ou seja, as redes de
sociabilidade e o ritual de hospitalidade que se manifestam no seio da elite culta e
viajante, descobrindo a si mesma na Europa das Luzes, revela uma genealogia de
práticas bastante complexa, na medida em que modelos iniciais sofrem sucessivas reinterpretações
(CORBIN, 1989 e THOMAS, 1988).
A partir do início do século XIX, conforme percebemos nos estudos de Thomas
e Corbin, se esboça um modelo de organização cujo desenho e gênese permite um
processo mais amplo de ajustamento do espaço e pulsões. A prática da vilegiatura passa
a fazer parte das prescrições médicas, com a descoberta do Bromo e do Iodo e suas
qualidades farmacológicas, então valorizadas, na água do mar, bem como a prática do
banho terapêutico nas águas de estâncias termais. Associada à difusão de novos hábitos
em fins do século XVIII, a indústria do turismo vai se firmando ao longo do século
XIX, aliada ao desenvolvimento de um moderno aparato publicitário e à melhoria dos
transportes, tornando os lugares mais acessíveis aos moradores da cidade. Surgem na
Europa entidades locais, associações e organizações turísticas (SICA, 1981). Como
exemplos europeus clássicos de estabelecimentos de estação de cura, podemos citar
Vichy e Aix-les-Bains, na França, Karlsbad e Baden-Baden, na Alemanha, Buxton,
Brighton, Leamington e Cheltenham, na Inglaterra (CALABI, 2000). Entre os inúmeros
resorts pitorescos, é importante citar Bath, também na Inglaterra, descrita muitas vezes
como palco de uma comédia de costumes ocorrido neste processo de ajuste de estilos,
sendo de fato uma preocupação central da cultura literária do século XVIII (...)
(THOMPSON, 1993: 23).
Algumas destas estações balneárias serviriam de inspiração para realizações do
gênero em nosso país. É o caso da viagem do arquiteto Eduardo Pederneiras à Europa,
com o intuito de recolher exemplos de arquitetura e planos urbanísticos para Poços de
Caldas (ANDRADE, 1998 e LIMA, 2001).
Em tais locais a codificação de hábitos coletivos, o desdobramento de estratégias
de distanciamento e distinção, que ordenam o espetáculo social, duplicam-se em
profundidade com a elaboração de cuidados pessoais individuais relacionados a novos
esquemas de apreciação e engendram modelos inéditos de comportamento (THOMAS,
1988 e VEBLEN, 1998). Criados, num primeiro momento, como retiros para abrigar
pessoas adoentadas das diversas classes sociais, muitas vezes de caráter assistencialista,
apresentam-se como um refúgio. Contudo, a maneira de estar junto, a conivência entre
turistas, os signos de reconhecimento e os procedimentos de distinção condicionam
igualmente as modalidades de fruição do lugar (CORBIN, 1989). Em muitos casos,
(...) proteger os clientes das atividades importunas e da visão
incômoda dos miseráveis era uma das amenidades que as estações
de férias deviam providenciar. Desencorajavam-se pacientes pobres,
ou procurava-se afastá-los do centro elegante, em uma cidade após
outra; as facilidades, que antes tinham sido grátis ou mais baratas,
começavam a custar mais, até que um tratamento sério tornou-se
dispendioso para os realmente pobres. Pacientes necessitados,
agora admitidos como indigentes, tiveram seu número limitado, e
seu tratamento ficou restrito a horas especiais, a lugares especiais
de residências e freqüentemente a edifícios termais separados
(WEBER, 1998: 222).
Ou seja, o seletivo caráter social e excludente também se torna preponderante à
medida que cresce o turismo balneário.
Se as estações turísticas traziam oportunidades significativas a uma indústria
relativamente nova - a propaganda - o moderno aparato publicitário produzia, por sua
vez, uma gradual evolução, num primeiro momento com uma conotação burguesa e
depois se estendendo para as massas, com a difusão cultural de novas práticas de lazer,
colocando em movimento novos fenômenos sociais e produtivos (SICA, 1981). Tais
meios produtivos podem ser observados através da criação de redes viárias, saneamento,
entre outros investimentos, bem como na motivação de uma política de assistência
social incluindo colônias de sanatórios (GLAUS, 1975. Em seu estudo sobre as cidades
do tempo livre, na Europa e Estados Unidos, Sica demonstra como que, com o dinheiro
e o patrimônio públicos, se constrói a infra-estrutura necessária e se cria, ao menos em
parte, a propriedade privada. Esta apertada trama de conexões entre o poder público e a
iniciativa privada também pode ser observada na criação de cidades balneárias em nosso
país.
2. CIDADES DO TEMPO LIVRE NO BRASIL.
Na Europa a afluência de estações balneárias tornou-se mais freqüente nos
século XVIII e XIX, como um paralelo da ampliação dos efeitos da revolução
industrial, com a contaminação estética e higiênica da tradicional paisagem urbana O
Brasil, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, também foi
marcado por uma explosão do crescimento populacional, principalmente em algumas
capitais, não acompanhada pela infraestrutura urbana necessária, piorando as condições
de habitação da população, que buscava abrigo em cortiços, cuja precariedade facilitava
o aparecimento de surtos e epidemias. A criação de retiros de altitude e balneários pode
ser mapeada dentro de tal contexto sócio-histórico (PIRES, 2001). Também podemos
citar, conforme ressalta Sevcenko, a política da saúde, em vias de se tornar o esteio do
turismo e, posteriormente, o Estado Varguista e a instituição do direito geral ao repouso
anual. Observa-se a proliferação da cultura desportiva, na qual o desenvolvimento dos
esportes na passagem do século se destinava justamente a adaptar os corpos e as
mentes à demanda acelerada das novas tecnologias (SEVCENKO, 1998: 571).
Conforme crescia a necessidade de territórios específicos direcionados ao convívio
social e emergiam novas sensibilidades no seio de uma crescente elite, tais práticas
justificavam os conflitos sociais e a necessidade de media-los através da profilaxia, da
higiene e da eugenia, conforme ressaltam alguns estudos (CHALHOUB, 1996 e
SEVCENKO, 1984).
No Brasil, a formação das primeiras estâncias hidrominerais, ainda na segunda
metade do século XIX, está diretamente relacionada as tentativas de afastamento de
surtos epidêmicos urbanos e às práticas medicinais vinculadas ao termalismo. Podemos
dizer que a prática da vilegiatura, associada aos cuidados com o corpo, entre eles a
hidroterapia, comum na Europa desde o século XVIII, difundiu-se em nosso país
principalmente através de duas maneiras: pelas viagens de membros da corte para
estações termais em várias províncias do país e pela circulação de livros estrangeiros
que descreviam o comportamento da elite e os ambientes glamurosos das mais famosas
estações européias (STEINKE, 2002).
Embora houvesse conhecimento da existência de águas com propriedades
terapêuticas em nosso solo desde o século XVIII, foi só em 1808, com a chegada da
família real que se cria o hábito de freqüentar socialmente tais locais. As primeiras
análises com a finalidade de atestar as propriedades químicas e terapêuticas de fontes de
águas termais no Brasil foram realizadas a pedido da corte ainda em 1840. A partir de
então, membros da elite passaram a visitar e estabelecer residências de veraneio em
estâncias termais de vários pontos do país, entre eles Caxambu e Poços de Caldas, em
Minas Gerais, e Caldas de Imperatriz, em Santa Catarina. Datam também desta época os
primeiros investimentos públicos significativos em obras de urbanização e infraestrutura,
criando condições para a construção de hotéis e pensões, que por sua vez
impulsionaram o turismo (STEINKE, 2004).
Nos primeiros anos do século XX, as estâncias hidrominerais apresentavam-se
como núcleos prósperos, algumas como filiais das principais casas bancárias e
comerciais da capital e hotéis de excelente padrão, muitos dos quais passariam a ser
dirigidas por experientes profissionais europeus a partir de 1917, quando, por ocasião da
Guerra, o Brasil acolheu e incorporou os estrangeiros exilados como mão-de-obra
qualificada, em diversos setores (ANDRADE, 1998). Já na primeira década do século
XX a constituição de uma elite paulistana, cuja sociabilidade se espelhava nos costumes
franceses da época, freqüentadora dos salões de suirées no bairro de Higienópolis,
empreendia viagens à Europa, mas também dividia seu tempo com estadias na região do
Guarujá. A temporada no litoral constituía um espaço singular no qual se podia praticar
o footing a exemplo das estâncias hidroterápicas (SCHAPOCHNIK 1998).
3. POÇOS DE CALDAS, SOB O OLHAR CURIOSO DE JOÃO DO RIO.
As estâncias balneárias foram freqüentemente retratadas pela literatura ao longo
do século dezenove e século vinte adentro. De Poços de Caldas, em particular, como
estância de status privilegiado entre certa elite brasileira, nos primeiros anos do século
XX, destaca-se a obra do escritor João do Rio, A Correspondência de uma Estação de
Cura. O universo particular e a vida artificial das estações termais na Belle Epóque
brasileira, tão bem retratados por João do Rio em suas crônicas e romances, é fruto de
duas temporadas que o autor passou nesta cidade, a primeira em 1906 e a segunda em
1917. Nas duas ocasiões João do Rio explorou as particularidades do comportamento
humano e os ambientes típicos das estâncias hidrominerais – cassinos, hotéis de luxo,
balneários e paisagem natural – ironizando a vida anódina da burguesia e o caráter
artificial desse tipo específico de cidade, que almejava ser a Paris ou a Vichy nacional.
O escritor João do rio, observador atento das mudanças na paisagem urbana do
Rio de Janeiro, registrou a referida cidade em transformação, entre o esplendor das
vitrines e o horror dos escombros de uma cidade que se civiliza a duras penas, na qual
se move a humanidade boquiaberta com a rápida mudança de valores, de moral, de
mundo enfim (VALENÇA, 1992: 15). Suas crônicas sobre a capital federal de então,
são bastante conhecidas, no entanto, outra cidade ainda figura como tema de seus
escritos: a pequena Poços de Caldas, no interior mineiro. João do Rio visita Poços de
Caldas pela primeira vez em 1906, aos 25 anos de idade, para a qual viajou por
indicação médica. Da estância mineira, ao escrever reportagens com observações sobre
os hotéis de cura e seus hóspedes, faz um registro peculiar da sociedade brasileira da
época e de suas relações sociais, mostrando que, assim como na Europa, a invenção doslugares e das práticas do turismo, ainda elitista, é uma soma de histórias singulares
(BOYER, 2003: 40).
Voltaria novamente a Poços de Caldas uma década mais tarde e, nessa estada,
escreveria o romance A Correspondência de Uma Estação de Cura, crônica de costumes
ambientada na estância mineira, contada através de cartas trocadas entre os diversos
personagens. Podemos dizer que a narrativa de João do Rio é lugar de memória por
conter um registro de um determinado tempo e espaço. Conforme aponta Pesavento
(...) entendemos que a irreverência, o deboche e o absurdo são
também uma forma de expor o social, de desmontar uma ordem
estabelecida, de narrar as misérias da natureza humana. Sem dúvida
que, a partir de uma visão literária, poderíamos objetar uma
possível comparação, invocando que, conforme o gênero tratado,
pode ser maior ou menor o nível de aproximação com a realidade.
(PESAVENTO, 2000: 247).
Então, para essa autora, o que nos interessa, é ter em conta “as maneiras de dizer
o real”, as quais podem guardar uma porção de verdade e de ficção e que podem ter no
seu referencial a própria realidade, revelando, a seu modo, um lado oculto da vida e de
determinadas situações (PESAVENTO, 2000: 277-8). Em A Intimidade dos Hotéis de
Cura, João do Rio aponta:
Nos hotéis de cura quase sempre o gerente informa quem é o novo
hospede. É o coronel, o excelente coronel ou o doutor, o notável
doutor. Todos são doutores e são coronéis. Chega uma pessoa
cansada, cheia de poeira das locomotivas ou rancor de ter subida a
serra em liteira e, imediatamente, começa a agir a intimidade (RIO,
1992: 70).
Em sua narrativa é perceptível o entrelaçamento das relações sociais entre os
“iguais” e o que os torna próximos, íntimos, quebrando quase que imediatamente
algumas convenções. Provinha, essa tácita proximidade, da divisão de algumas
situações comuns por esses indivíduos, que permitia a sensação de pertencimento a uma
mesma origem ou classe social, como, por exemplo, dividir - senão os mesmos -
semelhantes meios de transporte, tipo de hospedagem, gama de atividades, o gosto por
determinado padrão de vestes, entre outros sinais enviados pelos turistas/curistas. Era
apenas preciso decodificá-los, pois os mesmos os distinguiam.
Segundo João do Rio, (...)dois dias depois, a gente tem a impressão de que vive
há anos no casarão do hotel. Já sabe todos os nomes, todas as histórias secretas, todas
as intimidades (RIO, 1992: 71). Por outro lado, era também a difusão por imitação.
Sobre o assunto, Boyer comenta, referindo-se sobre a Europa:
Imitação capilar, pois cada extrato copiava os comportamentos e as
escolhas da categoria imediatamente superior. Durante os dois
séculos de turismo elitista, o fato de ser turista, de passar uma
temporada em certa estação da moda, conferia um status. Cada vez
mais numerosas, as pessoas do de alta renda se valorizavam pelas
migrações sazonais que faziam nas estações lançadas (BOYER,
2003: 32)
João do Rio descreve, de forma igualmente mordaz, o ambiente dos cassinos e as
jogatinas que presenciava nos salões dos cassinos, entre outros ambientes:
Há decerto uma misteriosa afinidade entre as roletas e as cidades
das águas. Onde haja uma praia, uma fonte termal ou um jorro com
propriedades minerais, podeis ter a certeza que há também roletas:
e quando um homem vos disser, apalpando o estômago ou
consultando o crânio, a ver se ainda lhe restam cabelos: venho de
fazer minha cura! – afirmai com a condição de uma absoluta
verdade: que incorrigível roseteiro tem diante dos olhos! Cidade de
águas, - cidade de jogo, neste selvagíssimo Brasil, como na
Alemanha, como na França, como em Portugal (RIO, 1992: 47).
E conclui, em Santa Roleta. Confissões de “Ponto”: (...) Porque as cidades
d’água não vivem de curas, vivem do dinheiro que a roleta absorve dos curáveis – a
roleta (RIO, 1992: 47).
Ao descrever as noites nos cassinos, não poupa nem mesmo uma relação deste
com os pacientes de um consultório médico visitado por ele pela manhã. O autor em As
Sensações de um Dia, comenta sobre a visita ao médico:
Todos aqueles clientes, na luz pálida da manhã, tinham umas pobres
fisionomias dolorosas e crispadas. Alguns ajudavam o médico no
desejo de rapidamente receberem o curativo; outros conservavam o
rosto fechado, como conhecedores do próximo fim; outros ainda
guardavam qualquer cousa de mecânico no riso e no andar, um
passo de mola, um sorriso de fantoche (RIO, 1992: 62).
Já, no final desse mesmo artigo, se surpreende com o fato de encontrar os
pacientes em distintas circunstâncias, no cassino:
(...) e nesse pequeno paraíso de frivolidade e elegância, que a
civilização parece brunir de um verniz de conservação, os meus
olhos apavorados começam a encontrar os que eu vira no escritório
do Mestre pela manhã, os que me haviam comunicado secretas
coisas da própria vida; eram quase totalmente outros. A sociedade e
o convívio, o bendito desejo de agradar, que move o orbe, como que
os galvanizaram. Passaram por mim, esquecidos da manhã,
aparentemente sãos. (...) (RIO, 1992:66).
E, ao interrogar a um deles, sobre o fato de ver ali, inteiramente sãos, todos
aqueles senhores da manhã, obtém a seguinte reposta: - Mas o mundo é assim. O Hotel
da Empresa é uma redução do mundo.
O tom pedagógico presente no discurso dos guias de viagem também emergiu no
discurso terapêutico, no qual a idéia de progresso e higiene tinha alcance (QUINTELA,
M. M. 2004). Ir a locais privilegiados onde o prazer da estadia, por si só, levava à cura,
ou ao menos, ao alívio. O discurso higienista dava credibilidade à escolha das estações e
ao ritmo das temporadas, vistas mesmo como uma questão de saúde publica.
A relação entre a natureza e o ritmo de vida urbana incorporada pela elite
freqüentadora da estância também não escapa à perspicácia do autor. Na descrição de
um pic-nic que o mesmo teve a oportunidade de presenciar, observa que as senhorasdiscutiam moda; embora exclamassem “que beleza”, referindo-se a paisagem e os
cavalheiros, conversavam sobre política e as últimas notícias que chegavam através dos
jornais do Rio.
Segundo João do Rio
(...) Nenhum desses senhores olhava a riqueza azul do céu, nenhum
deles parecia sentir o ar fino ensopado de aromar. Em
compensação, cada cérebro era um repositório de histórias da vida
alheia. Conforme o grau social, podia-se catalogar naquele passeio
campestre uma série de biografia s de homens urbanos. (...) (RIO,
1992:78)
Assim, conclui:
Cada um de nós conversava do seu meio, mostrava as preocupações
do asfalto e da poeira, conservava a fisionomia composta com
esforço na cidade e com maior esforço lá sustentada. A natureza era
como um parente remoto e venerável de que se guarda o retrato a
óleo e de corpo inteiro no quarto dos cacaréus. (RIO, 1992: 80).
Ao retomar a observação de um senhor que descuidadamente ressalta o prazer de
se beber um vinho assim, sob as árvores: O cidadão nem olhara o local, nem vira que
de arvores só existia um exemplar triste e anêmico! (RIO, 1992: 82). Ou seja, a bela
paisagem era o fundo vago da fotografia na percepção daqueles homens.
A partir dos escritos de Correspondência de uma estação de cura é possível notar
que, se a natureza e a presença das fontes termais atuam como um atrativo. Por outro
lado, impõem-se, ao mesmo tempo, através das relações sociais estabelecidas, a
presença dos hábitos urbanos, através dos diálogos estabelecidos, das práticas da leitura
cotidiana do jornal, da vida noturna e ao se freqüentar os cassinos.
É a junção de vários aspectos, onde a insularidade geográfica, a perfeição
decantada da ordem espacial e social, conforme sugere Sica, oferece alguns traços
próprios da utopia da evasão, de um quase naturalismo romântico. Entretanto, assim
como na Europa e Estados Unidos, também em nosso território aparece vinculada
inevitavelmente às relações de produção vigentes, permitindo o consumo privilegiado.
Ironicamente, os mesmos atrativos que permitem que o local seja considerado
privilegiado para tratamentos de determinadas doenças e também para o descanso,
assumem um caráter urbano (através de reformas e melhoramentos que modificam a
paisagem), se tornando lugares padronizados para atenderem ao público que os
promovem. Tais características, alinhavadas aqui, formam um élan para se estudar a
história das cidades do tempo livre em nosso país.
Esse pequeno ensaio permite estabelecer uma relação entre a literatura e a
história, percebendo o turismo de estações balneárias através da difusão e apropriação
de modelos e a invenção da distinção. Tal estudo permite colocar a cidade como espaço
por excelência para a construção de significados e, nesse contexto específico a que nos
referimos no presente texto, o resgate da memória através da leitura da cidade do tempo
livre e de suas representações na obra A correspondência de uma estação de cura.
O instante em que os velhos sonhos afundam
com todas as superstições de outrora,
inclusive a da moral, na eclosão de uma vida frenética e admirável.
(João do Rio, discurso de posse na Academia de Letras, 1910)
1. O SURGIMENTO DAS CIDADES DO TEMPO LIVRE.
As estâncias balneárias, também chamadas cidades do tempo livre, são núcleos
urbanos que devem sua existência, por definição, aos prazeres do ócio, ao contato com a
natureza e à contemplação da paisagem, em muitos casos voltados a demandas curistas
(SICA, 1981). Ainda que não seja um campo amplamente explorado pela historiografia
em nosso país, é um tema que apresenta singular configuração para a história social.
Geralmente localizadas no litoral ou junto às montanhas, ou ainda em lugares onde se
encontram águas com propriedades terapêuticas, as cidades do tempo livre surgem a
partir do século XVII na Europa, à medida que a difusão da prática do veraneio começa
a se instaurar no seio da sociedade ocidental (CORBIN, 1989). Para compreendê-la,
segundo Corbin, é necessário compreender a gênese das leituras e das práticas novas da
paisagem que se opera nesse período, o que também implica compreender previamente
a coerência do feixe de representações que o antecede. Ou seja, as redes de
sociabilidade e o ritual de hospitalidade que se manifestam no seio da elite culta e
viajante, descobrindo a si mesma na Europa das Luzes, revela uma genealogia de
práticas bastante complexa, na medida em que modelos iniciais sofrem sucessivas reinterpretações
(CORBIN, 1989 e THOMAS, 1988).
A partir do início do século XIX, conforme percebemos nos estudos de Thomas
e Corbin, se esboça um modelo de organização cujo desenho e gênese permite um
processo mais amplo de ajustamento do espaço e pulsões. A prática da vilegiatura passa
a fazer parte das prescrições médicas, com a descoberta do Bromo e do Iodo e suas
qualidades farmacológicas, então valorizadas, na água do mar, bem como a prática do
banho terapêutico nas águas de estâncias termais. Associada à difusão de novos hábitos
em fins do século XVIII, a indústria do turismo vai se firmando ao longo do século
XIX, aliada ao desenvolvimento de um moderno aparato publicitário e à melhoria dos
transportes, tornando os lugares mais acessíveis aos moradores da cidade. Surgem na
Europa entidades locais, associações e organizações turísticas (SICA, 1981). Como
exemplos europeus clássicos de estabelecimentos de estação de cura, podemos citar
Vichy e Aix-les-Bains, na França, Karlsbad e Baden-Baden, na Alemanha, Buxton,
Brighton, Leamington e Cheltenham, na Inglaterra (CALABI, 2000). Entre os inúmeros
resorts pitorescos, é importante citar Bath, também na Inglaterra, descrita muitas vezes
como palco de uma comédia de costumes ocorrido neste processo de ajuste de estilos,
sendo de fato uma preocupação central da cultura literária do século XVIII (...)
(THOMPSON, 1993: 23).
Algumas destas estações balneárias serviriam de inspiração para realizações do
gênero em nosso país. É o caso da viagem do arquiteto Eduardo Pederneiras à Europa,
com o intuito de recolher exemplos de arquitetura e planos urbanísticos para Poços de
Caldas (ANDRADE, 1998 e LIMA, 2001).
Em tais locais a codificação de hábitos coletivos, o desdobramento de estratégias
de distanciamento e distinção, que ordenam o espetáculo social, duplicam-se em
profundidade com a elaboração de cuidados pessoais individuais relacionados a novos
esquemas de apreciação e engendram modelos inéditos de comportamento (THOMAS,
1988 e VEBLEN, 1998). Criados, num primeiro momento, como retiros para abrigar
pessoas adoentadas das diversas classes sociais, muitas vezes de caráter assistencialista,
apresentam-se como um refúgio. Contudo, a maneira de estar junto, a conivência entre
turistas, os signos de reconhecimento e os procedimentos de distinção condicionam
igualmente as modalidades de fruição do lugar (CORBIN, 1989). Em muitos casos,
(...) proteger os clientes das atividades importunas e da visão
incômoda dos miseráveis era uma das amenidades que as estações
de férias deviam providenciar. Desencorajavam-se pacientes pobres,
ou procurava-se afastá-los do centro elegante, em uma cidade após
outra; as facilidades, que antes tinham sido grátis ou mais baratas,
começavam a custar mais, até que um tratamento sério tornou-se
dispendioso para os realmente pobres. Pacientes necessitados,
agora admitidos como indigentes, tiveram seu número limitado, e
seu tratamento ficou restrito a horas especiais, a lugares especiais
de residências e freqüentemente a edifícios termais separados
(WEBER, 1998: 222).
Ou seja, o seletivo caráter social e excludente também se torna preponderante à
medida que cresce o turismo balneário.
Se as estações turísticas traziam oportunidades significativas a uma indústria
relativamente nova - a propaganda - o moderno aparato publicitário produzia, por sua
vez, uma gradual evolução, num primeiro momento com uma conotação burguesa e
depois se estendendo para as massas, com a difusão cultural de novas práticas de lazer,
colocando em movimento novos fenômenos sociais e produtivos (SICA, 1981). Tais
meios produtivos podem ser observados através da criação de redes viárias, saneamento,
entre outros investimentos, bem como na motivação de uma política de assistência
social incluindo colônias de sanatórios (GLAUS, 1975. Em seu estudo sobre as cidades
do tempo livre, na Europa e Estados Unidos, Sica demonstra como que, com o dinheiro
e o patrimônio públicos, se constrói a infra-estrutura necessária e se cria, ao menos em
parte, a propriedade privada. Esta apertada trama de conexões entre o poder público e a
iniciativa privada também pode ser observada na criação de cidades balneárias em nosso
país.
2. CIDADES DO TEMPO LIVRE NO BRASIL.
Na Europa a afluência de estações balneárias tornou-se mais freqüente nos
século XVIII e XIX, como um paralelo da ampliação dos efeitos da revolução
industrial, com a contaminação estética e higiênica da tradicional paisagem urbana O
Brasil, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, também foi
marcado por uma explosão do crescimento populacional, principalmente em algumas
capitais, não acompanhada pela infraestrutura urbana necessária, piorando as condições
de habitação da população, que buscava abrigo em cortiços, cuja precariedade facilitava
o aparecimento de surtos e epidemias. A criação de retiros de altitude e balneários pode
ser mapeada dentro de tal contexto sócio-histórico (PIRES, 2001). Também podemos
citar, conforme ressalta Sevcenko, a política da saúde, em vias de se tornar o esteio do
turismo e, posteriormente, o Estado Varguista e a instituição do direito geral ao repouso
anual. Observa-se a proliferação da cultura desportiva, na qual o desenvolvimento dos
esportes na passagem do século se destinava justamente a adaptar os corpos e as
mentes à demanda acelerada das novas tecnologias (SEVCENKO, 1998: 571).
Conforme crescia a necessidade de territórios específicos direcionados ao convívio
social e emergiam novas sensibilidades no seio de uma crescente elite, tais práticas
justificavam os conflitos sociais e a necessidade de media-los através da profilaxia, da
higiene e da eugenia, conforme ressaltam alguns estudos (CHALHOUB, 1996 e
SEVCENKO, 1984).
No Brasil, a formação das primeiras estâncias hidrominerais, ainda na segunda
metade do século XIX, está diretamente relacionada as tentativas de afastamento de
surtos epidêmicos urbanos e às práticas medicinais vinculadas ao termalismo. Podemos
dizer que a prática da vilegiatura, associada aos cuidados com o corpo, entre eles a
hidroterapia, comum na Europa desde o século XVIII, difundiu-se em nosso país
principalmente através de duas maneiras: pelas viagens de membros da corte para
estações termais em várias províncias do país e pela circulação de livros estrangeiros
que descreviam o comportamento da elite e os ambientes glamurosos das mais famosas
estações européias (STEINKE, 2002).
Embora houvesse conhecimento da existência de águas com propriedades
terapêuticas em nosso solo desde o século XVIII, foi só em 1808, com a chegada da
família real que se cria o hábito de freqüentar socialmente tais locais. As primeiras
análises com a finalidade de atestar as propriedades químicas e terapêuticas de fontes de
águas termais no Brasil foram realizadas a pedido da corte ainda em 1840. A partir de
então, membros da elite passaram a visitar e estabelecer residências de veraneio em
estâncias termais de vários pontos do país, entre eles Caxambu e Poços de Caldas, em
Minas Gerais, e Caldas de Imperatriz, em Santa Catarina. Datam também desta época os
primeiros investimentos públicos significativos em obras de urbanização e infraestrutura,
criando condições para a construção de hotéis e pensões, que por sua vez
impulsionaram o turismo (STEINKE, 2004).
Nos primeiros anos do século XX, as estâncias hidrominerais apresentavam-se
como núcleos prósperos, algumas como filiais das principais casas bancárias e
comerciais da capital e hotéis de excelente padrão, muitos dos quais passariam a ser
dirigidas por experientes profissionais europeus a partir de 1917, quando, por ocasião da
Guerra, o Brasil acolheu e incorporou os estrangeiros exilados como mão-de-obra
qualificada, em diversos setores (ANDRADE, 1998). Já na primeira década do século
XX a constituição de uma elite paulistana, cuja sociabilidade se espelhava nos costumes
franceses da época, freqüentadora dos salões de suirées no bairro de Higienópolis,
empreendia viagens à Europa, mas também dividia seu tempo com estadias na região do
Guarujá. A temporada no litoral constituía um espaço singular no qual se podia praticar
o footing a exemplo das estâncias hidroterápicas (SCHAPOCHNIK 1998).
3. POÇOS DE CALDAS, SOB O OLHAR CURIOSO DE JOÃO DO RIO.
As estâncias balneárias foram freqüentemente retratadas pela literatura ao longo
do século dezenove e século vinte adentro. De Poços de Caldas, em particular, como
estância de status privilegiado entre certa elite brasileira, nos primeiros anos do século
XX, destaca-se a obra do escritor João do Rio, A Correspondência de uma Estação de
Cura. O universo particular e a vida artificial das estações termais na Belle Epóque
brasileira, tão bem retratados por João do Rio em suas crônicas e romances, é fruto de
duas temporadas que o autor passou nesta cidade, a primeira em 1906 e a segunda em
1917. Nas duas ocasiões João do Rio explorou as particularidades do comportamento
humano e os ambientes típicos das estâncias hidrominerais – cassinos, hotéis de luxo,
balneários e paisagem natural – ironizando a vida anódina da burguesia e o caráter
artificial desse tipo específico de cidade, que almejava ser a Paris ou a Vichy nacional.
O escritor João do rio, observador atento das mudanças na paisagem urbana do
Rio de Janeiro, registrou a referida cidade em transformação, entre o esplendor das
vitrines e o horror dos escombros de uma cidade que se civiliza a duras penas, na qual
se move a humanidade boquiaberta com a rápida mudança de valores, de moral, de
mundo enfim (VALENÇA, 1992: 15). Suas crônicas sobre a capital federal de então,
são bastante conhecidas, no entanto, outra cidade ainda figura como tema de seus
escritos: a pequena Poços de Caldas, no interior mineiro. João do Rio visita Poços de
Caldas pela primeira vez em 1906, aos 25 anos de idade, para a qual viajou por
indicação médica. Da estância mineira, ao escrever reportagens com observações sobre
os hotéis de cura e seus hóspedes, faz um registro peculiar da sociedade brasileira da
época e de suas relações sociais, mostrando que, assim como na Europa, a invenção doslugares e das práticas do turismo, ainda elitista, é uma soma de histórias singulares
(BOYER, 2003: 40).
Voltaria novamente a Poços de Caldas uma década mais tarde e, nessa estada,
escreveria o romance A Correspondência de Uma Estação de Cura, crônica de costumes
ambientada na estância mineira, contada através de cartas trocadas entre os diversos
personagens. Podemos dizer que a narrativa de João do Rio é lugar de memória por
conter um registro de um determinado tempo e espaço. Conforme aponta Pesavento
(...) entendemos que a irreverência, o deboche e o absurdo são
também uma forma de expor o social, de desmontar uma ordem
estabelecida, de narrar as misérias da natureza humana. Sem dúvida
que, a partir de uma visão literária, poderíamos objetar uma
possível comparação, invocando que, conforme o gênero tratado,
pode ser maior ou menor o nível de aproximação com a realidade.
(PESAVENTO, 2000: 247).
Então, para essa autora, o que nos interessa, é ter em conta “as maneiras de dizer
o real”, as quais podem guardar uma porção de verdade e de ficção e que podem ter no
seu referencial a própria realidade, revelando, a seu modo, um lado oculto da vida e de
determinadas situações (PESAVENTO, 2000: 277-8). Em A Intimidade dos Hotéis de
Cura, João do Rio aponta:
Nos hotéis de cura quase sempre o gerente informa quem é o novo
hospede. É o coronel, o excelente coronel ou o doutor, o notável
doutor. Todos são doutores e são coronéis. Chega uma pessoa
cansada, cheia de poeira das locomotivas ou rancor de ter subida a
serra em liteira e, imediatamente, começa a agir a intimidade (RIO,
1992: 70).
Em sua narrativa é perceptível o entrelaçamento das relações sociais entre os
“iguais” e o que os torna próximos, íntimos, quebrando quase que imediatamente
algumas convenções. Provinha, essa tácita proximidade, da divisão de algumas
situações comuns por esses indivíduos, que permitia a sensação de pertencimento a uma
mesma origem ou classe social, como, por exemplo, dividir - senão os mesmos -
semelhantes meios de transporte, tipo de hospedagem, gama de atividades, o gosto por
determinado padrão de vestes, entre outros sinais enviados pelos turistas/curistas. Era
apenas preciso decodificá-los, pois os mesmos os distinguiam.
Segundo João do Rio, (...)dois dias depois, a gente tem a impressão de que vive
há anos no casarão do hotel. Já sabe todos os nomes, todas as histórias secretas, todas
as intimidades (RIO, 1992: 71). Por outro lado, era também a difusão por imitação.
Sobre o assunto, Boyer comenta, referindo-se sobre a Europa:
Imitação capilar, pois cada extrato copiava os comportamentos e as
escolhas da categoria imediatamente superior. Durante os dois
séculos de turismo elitista, o fato de ser turista, de passar uma
temporada em certa estação da moda, conferia um status. Cada vez
mais numerosas, as pessoas do de alta renda se valorizavam pelas
migrações sazonais que faziam nas estações lançadas (BOYER,
2003: 32)
João do Rio descreve, de forma igualmente mordaz, o ambiente dos cassinos e as
jogatinas que presenciava nos salões dos cassinos, entre outros ambientes:
Há decerto uma misteriosa afinidade entre as roletas e as cidades
das águas. Onde haja uma praia, uma fonte termal ou um jorro com
propriedades minerais, podeis ter a certeza que há também roletas:
e quando um homem vos disser, apalpando o estômago ou
consultando o crânio, a ver se ainda lhe restam cabelos: venho de
fazer minha cura! – afirmai com a condição de uma absoluta
verdade: que incorrigível roseteiro tem diante dos olhos! Cidade de
águas, - cidade de jogo, neste selvagíssimo Brasil, como na
Alemanha, como na França, como em Portugal (RIO, 1992: 47).
E conclui, em Santa Roleta. Confissões de “Ponto”: (...) Porque as cidades
d’água não vivem de curas, vivem do dinheiro que a roleta absorve dos curáveis – a
roleta (RIO, 1992: 47).
Ao descrever as noites nos cassinos, não poupa nem mesmo uma relação deste
com os pacientes de um consultório médico visitado por ele pela manhã. O autor em As
Sensações de um Dia, comenta sobre a visita ao médico:
Todos aqueles clientes, na luz pálida da manhã, tinham umas pobres
fisionomias dolorosas e crispadas. Alguns ajudavam o médico no
desejo de rapidamente receberem o curativo; outros conservavam o
rosto fechado, como conhecedores do próximo fim; outros ainda
guardavam qualquer cousa de mecânico no riso e no andar, um
passo de mola, um sorriso de fantoche (RIO, 1992: 62).
Já, no final desse mesmo artigo, se surpreende com o fato de encontrar os
pacientes em distintas circunstâncias, no cassino:
(...) e nesse pequeno paraíso de frivolidade e elegância, que a
civilização parece brunir de um verniz de conservação, os meus
olhos apavorados começam a encontrar os que eu vira no escritório
do Mestre pela manhã, os que me haviam comunicado secretas
coisas da própria vida; eram quase totalmente outros. A sociedade e
o convívio, o bendito desejo de agradar, que move o orbe, como que
os galvanizaram. Passaram por mim, esquecidos da manhã,
aparentemente sãos. (...) (RIO, 1992:66).
E, ao interrogar a um deles, sobre o fato de ver ali, inteiramente sãos, todos
aqueles senhores da manhã, obtém a seguinte reposta: - Mas o mundo é assim. O Hotel
da Empresa é uma redução do mundo.
O tom pedagógico presente no discurso dos guias de viagem também emergiu no
discurso terapêutico, no qual a idéia de progresso e higiene tinha alcance (QUINTELA,
M. M. 2004). Ir a locais privilegiados onde o prazer da estadia, por si só, levava à cura,
ou ao menos, ao alívio. O discurso higienista dava credibilidade à escolha das estações e
ao ritmo das temporadas, vistas mesmo como uma questão de saúde publica.
A relação entre a natureza e o ritmo de vida urbana incorporada pela elite
freqüentadora da estância também não escapa à perspicácia do autor. Na descrição de
um pic-nic que o mesmo teve a oportunidade de presenciar, observa que as senhorasdiscutiam moda; embora exclamassem “que beleza”, referindo-se a paisagem e os
cavalheiros, conversavam sobre política e as últimas notícias que chegavam através dos
jornais do Rio.
Segundo João do Rio
(...) Nenhum desses senhores olhava a riqueza azul do céu, nenhum
deles parecia sentir o ar fino ensopado de aromar. Em
compensação, cada cérebro era um repositório de histórias da vida
alheia. Conforme o grau social, podia-se catalogar naquele passeio
campestre uma série de biografia s de homens urbanos. (...) (RIO,
1992:78)
Assim, conclui:
Cada um de nós conversava do seu meio, mostrava as preocupações
do asfalto e da poeira, conservava a fisionomia composta com
esforço na cidade e com maior esforço lá sustentada. A natureza era
como um parente remoto e venerável de que se guarda o retrato a
óleo e de corpo inteiro no quarto dos cacaréus. (RIO, 1992: 80).
Ao retomar a observação de um senhor que descuidadamente ressalta o prazer de
se beber um vinho assim, sob as árvores: O cidadão nem olhara o local, nem vira que
de arvores só existia um exemplar triste e anêmico! (RIO, 1992: 82). Ou seja, a bela
paisagem era o fundo vago da fotografia na percepção daqueles homens.
A partir dos escritos de Correspondência de uma estação de cura é possível notar
que, se a natureza e a presença das fontes termais atuam como um atrativo. Por outro
lado, impõem-se, ao mesmo tempo, através das relações sociais estabelecidas, a
presença dos hábitos urbanos, através dos diálogos estabelecidos, das práticas da leitura
cotidiana do jornal, da vida noturna e ao se freqüentar os cassinos.
É a junção de vários aspectos, onde a insularidade geográfica, a perfeição
decantada da ordem espacial e social, conforme sugere Sica, oferece alguns traços
próprios da utopia da evasão, de um quase naturalismo romântico. Entretanto, assim
como na Europa e Estados Unidos, também em nosso território aparece vinculada
inevitavelmente às relações de produção vigentes, permitindo o consumo privilegiado.
Ironicamente, os mesmos atrativos que permitem que o local seja considerado
privilegiado para tratamentos de determinadas doenças e também para o descanso,
assumem um caráter urbano (através de reformas e melhoramentos que modificam a
paisagem), se tornando lugares padronizados para atenderem ao público que os
promovem. Tais características, alinhavadas aqui, formam um élan para se estudar a
história das cidades do tempo livre em nosso país.
Esse pequeno ensaio permite estabelecer uma relação entre a literatura e a
história, percebendo o turismo de estações balneárias através da difusão e apropriação
de modelos e a invenção da distinção. Tal estudo permite colocar a cidade como espaço
por excelência para a construção de significados e, nesse contexto específico a que nos
referimos no presente texto, o resgate da memória através da leitura da cidade do tempo
livre e de suas representações na obra A correspondência de uma estação de cura.
quarta-feira, 12 de março de 2014
domingo, 9 de março de 2014
Quintal. História de ninhos e revides
E eu carpindo o quintal com minha coroa nesse fim de fevereiro. Abrindo na enxada a valeta de terra pras águas escoarem. Cavando, arrastando, eu mais Dona Ana entre uma pancada de goiaba bicada e um baque de manga, recordando minha Vó Carmelina que hoje descobri que benzia erisipela. Eu mais Dona Ana da Pureza afastando cadáver de ratazana e plastiqueira colorida, trocando receitas de chá e funções de emplastro (use folha de amoreira pra infecções). Eu mais Dona Ana na lida da enxada, barreando pé ligeiros com a lacraia amarela debaixo do tôco e sempre de rabo de olho pro risco no muro, marca das enchentes na altura do meu peito, as que levaram máquina de lavar e livros, arrastaram estrados e bichos amados, uns que comiam até fubá. Dona Ana da Pureza, 72 anos em uma casa margeada pelo córgo que tanto pisei procurando bola e tirando caco da sola.
Quintal de carpir, esse que hoje nem trisca a miragem de quem futura um cantinho pra morar, pra amar, pra colher e brincar. Se entalados entre vielas e prédios, às vezes cometendo a heresia de pisar no asfalto cada vez mais alargado pra passar aço em cima de pneu, arriscando trombada e atropelo, teto é devaneio largo... quintal então...
Aqui num país que teve um vencedor só em todas as últimas eleições municipais e estaduais e federal: as empreiteiras, mecenas de todas candidaturas. Campeãs e vices de norte a sul, se vacilar levando bronze também, estofando com as verdinhas os bonecos tratados pelas agências marqueteiras. E persiste nossa memória de ninhos e revides perfumada de quintal. Teimosia mais que nostalgia.
Assim, escrevi sobre quintal no meu recente livro "Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem":
"Quintal: A roupa de algodão que se recolhe do varal com o pôr-do-sol, foi tocada, uma manhã e uma tarde, pelo vento; e o vento traz partículas do cheiro bom que há nos cantos do quintal. Aliás, perfume é delícia e privilégio de quintais que, pelas árvores regentes de seu espaço ou por vasos acarinhados e tratados como filhos (ou como pais e avós, mais velhos, reverenciados), espalham cheiro e são áreas especiais na memória afro-brasileira. O quintal media as intimidades da casa e as surpresas e ousadias da rua, externas. É onde se misturam as regras de fora e as condições de dentro, quase sempre trazendo um certo drama, uma necessidade de arranjo. Assim, ajunta os símbolos que expressam um esforço pela constância, pela resistência e pela manutenção de valores no seio da própria passagem do tempo, buscando sínteses, elos, pontes.(...) O drama aflora por vezes entre os que dançam nas lutas da vida, mas também pode surgir entre os porta-vozes de posturas e de linhagens diferentes que se encontram no mesmo chão batido, às vezes coberto, onde ministram sua celebração mais solene. A função ritmada, no quintal onde se esquenta o couro e se afina o tambor, que já começa a se testar chamando a confraternização musicada e dançada (o "convívio", como se diz em Luanda), gera conflitos, desafios e paz. É atrativa para choros e gargalhadas (e talvez também para a orgia, símbolo também da estrutura dramática). Quintal acolhe os chegados, mas tem garantidos os segredos de dentro da morada. Antes da festa negra, um quintal é preparado, rezado. Quintal que em seus fundos dá parição ao samba amigo e à ginga, lugar mais protegido da repressão e dos incômodos, por ventura racistas, que acometeram e acometem bravamente as manifestações culturais musicais e religiosas negras. Quintal que desemboca na boca do portão, que às vezes se confunde à calçada, ao passeio. Quintal, espécie de entre-lugar que traz a co-incidência e os valores que conjugam o fora e o dentro. Quintal que, tão bom anfitrião do ritmo e das rodas, sintetiza passagens, ostenta árvores soberanas e robustas, ou sorrateiras e portadoras de segredos".
Ê quintal... Foi nos quintais em Cabo Verde, lá pros miliquinhentos, que se deu uma primeira grande mocambagem – ali a revolta de quem já tinha se lascado embarcado em navios à força pra usar a força no açúcar dos outros, no que ainda era o sistema de 'quintê' na exploração da portugália escravista, que então cabreira e experimentada impôs o sistema moinho-casa grande- senzala. Quintais: tão importantes pra nossa história, guardando nos fundos a reunião, o cultivo, a bença. Onde não se está mais no solto das malícias e tretas da rua mas também ainda não se adentrou no íntimo do quarto, no calor da cozinha. Quintal, ali os vasos de cheiro ou o esgoto aberto, a mistura das regras de fora com as condições de dentro.
Pisando tempos de asfalto, elevador e remoção forçada, era da tela e do teclado reinantes, é téquinho de quintal que prevalece nas artérias arteiras e em tantos vasinhos de beira de janela. Verde urbano num esconde-esconde pinicando pescoço e coçando braço, com meu moleque pelos terrenos baldios nas beiradas do glorioso Jabaquara.
Fonte: Á Beira da Palavra
Quintal de carpir, esse que hoje nem trisca a miragem de quem futura um cantinho pra morar, pra amar, pra colher e brincar. Se entalados entre vielas e prédios, às vezes cometendo a heresia de pisar no asfalto cada vez mais alargado pra passar aço em cima de pneu, arriscando trombada e atropelo, teto é devaneio largo... quintal então...
Aqui num país que teve um vencedor só em todas as últimas eleições municipais e estaduais e federal: as empreiteiras, mecenas de todas candidaturas. Campeãs e vices de norte a sul, se vacilar levando bronze também, estofando com as verdinhas os bonecos tratados pelas agências marqueteiras. E persiste nossa memória de ninhos e revides perfumada de quintal. Teimosia mais que nostalgia.
Assim, escrevi sobre quintal no meu recente livro "Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem":
"Quintal: A roupa de algodão que se recolhe do varal com o pôr-do-sol, foi tocada, uma manhã e uma tarde, pelo vento; e o vento traz partículas do cheiro bom que há nos cantos do quintal. Aliás, perfume é delícia e privilégio de quintais que, pelas árvores regentes de seu espaço ou por vasos acarinhados e tratados como filhos (ou como pais e avós, mais velhos, reverenciados), espalham cheiro e são áreas especiais na memória afro-brasileira. O quintal media as intimidades da casa e as surpresas e ousadias da rua, externas. É onde se misturam as regras de fora e as condições de dentro, quase sempre trazendo um certo drama, uma necessidade de arranjo. Assim, ajunta os símbolos que expressam um esforço pela constância, pela resistência e pela manutenção de valores no seio da própria passagem do tempo, buscando sínteses, elos, pontes.(...) O drama aflora por vezes entre os que dançam nas lutas da vida, mas também pode surgir entre os porta-vozes de posturas e de linhagens diferentes que se encontram no mesmo chão batido, às vezes coberto, onde ministram sua celebração mais solene. A função ritmada, no quintal onde se esquenta o couro e se afina o tambor, que já começa a se testar chamando a confraternização musicada e dançada (o "convívio", como se diz em Luanda), gera conflitos, desafios e paz. É atrativa para choros e gargalhadas (e talvez também para a orgia, símbolo também da estrutura dramática). Quintal acolhe os chegados, mas tem garantidos os segredos de dentro da morada. Antes da festa negra, um quintal é preparado, rezado. Quintal que em seus fundos dá parição ao samba amigo e à ginga, lugar mais protegido da repressão e dos incômodos, por ventura racistas, que acometeram e acometem bravamente as manifestações culturais musicais e religiosas negras. Quintal que desemboca na boca do portão, que às vezes se confunde à calçada, ao passeio. Quintal, espécie de entre-lugar que traz a co-incidência e os valores que conjugam o fora e o dentro. Quintal que, tão bom anfitrião do ritmo e das rodas, sintetiza passagens, ostenta árvores soberanas e robustas, ou sorrateiras e portadoras de segredos".
Ê quintal... Foi nos quintais em Cabo Verde, lá pros miliquinhentos, que se deu uma primeira grande mocambagem – ali a revolta de quem já tinha se lascado embarcado em navios à força pra usar a força no açúcar dos outros, no que ainda era o sistema de 'quintê' na exploração da portugália escravista, que então cabreira e experimentada impôs o sistema moinho-casa grande- senzala. Quintais: tão importantes pra nossa história, guardando nos fundos a reunião, o cultivo, a bença. Onde não se está mais no solto das malícias e tretas da rua mas também ainda não se adentrou no íntimo do quarto, no calor da cozinha. Quintal, ali os vasos de cheiro ou o esgoto aberto, a mistura das regras de fora com as condições de dentro.
Pisando tempos de asfalto, elevador e remoção forçada, era da tela e do teclado reinantes, é téquinho de quintal que prevalece nas artérias arteiras e em tantos vasinhos de beira de janela. Verde urbano num esconde-esconde pinicando pescoço e coçando braço, com meu moleque pelos terrenos baldios nas beiradas do glorioso Jabaquara.
Fonte: Á Beira da Palavra
domingo, 2 de março de 2014
Uma insólita viagem à subjetividade fronteiras com a ética e a cultura
Suely Rolnik
Tem início aqui uma inusitada viagem ao mundo da subjetividade. Uma especial curiosidade em conhecer suas regiões fronteiriças com a ética e a cultura estará nos direcionando ao longo das sete etapas desta aventura.
Primeira etapa. Ainda estamos um tanto distraídos. Por ora, o que vislumbramos da subjetividade é o perfil de um modo de ser - de pensar, de agir, de sonhar, de amar, etc. - que recorta o espaço, formando um interior e um exterior. Nosso olhar desatento vê na pele que traça este perfil uma superfície compacta e uma certa quietude. Isso nos faz pensar que este perfil é imutável, assim como o interior e o exterior que ele separa. Não vale a pena nos demorarmos nesta visão mais banal. Passemos imediatamente para uma segunda etapa de nossa viagem.
Aqui convocaremos, de nosso olho, uma certa potencialidade que qualificarei de “vibrátil”, que faz com que o olho seja tocado pela força do que vê. Sem muita dificuldade, logo notamos que a densidade desta pele é ilusória e efêmero é o perfil que ela envolve e delineia. A pele é um tecido vivo e móvel, feito das forças/fluxos que compõem os meios variáveis que habitam a subjetividade: meio profissional, familiar, sexual, econômico, político, cultural, informático, turístico, etc. Como estes meios, além de variarem ao longo do tempo, fazem entre si diferentes combinações, outras forças entram constantemente em jôgo, que vão misturar-se às já existentes, numa dinâmica incessante de atração e repulsa. Formam-se na pele constelações as mais diversas que vão se acumulando até que um diagrama inusitado de relações de força se configure. Nesse momento, nosso olho vibrátil capta na pele uma certa inquietação, como se algo estivesse fora do lugar ou de foco. A esta altura de nossa viagem, não conseguimos saber muito mais do que isso. Passemos então para uma terceira etapa.
Aqui, recorreremos a um artifício um tanto insólito: vamos estender a pele, desfazendo o perfil que ela desenha, de modo a transformá-la numa superfície plana. O que nosso olho vibrátil presencia então é a pele começando a reagir ao incômodo causado pelo novo diagrama: ela se dobra, fazendo uma espécie de curvatura. Surpresos, vemos emergir no interior desta dobra, o cenário de todo um modo de existência. É como se o diagrama que dá à pele sua atual tessitura, tivesse se corporificado num microuniverso. Reencontramos aqui um perfil de subjetividade, porém ele não é o mesmo que víamos no comêço. Fascinados, resolvemos não seguir adiante e nos demorarmos mais tempo nessa etapa de nossa viagem.
O que logo observamos é que outros fluxos vão entrando na composição da pele, formando outras constelações e que, aos poucos, outros diagramas de relações de força emergem e assim sucessivamente. A cada vez que um diagrama se forma, a pele se curva novamente. Nesta dinâmica, onde havia uma dobra, ela se desfaz; a pele volta a estender-se, ao mesmo tempo que se curva em outro lugar e de outro jeito; um perfil se dilui, enquanto outro se esboça. O que fica claro é que cada modo de existência é uma dobra da pele que delineia o perfil de uma determinada figura da subjetividade. Agora, sim, podemos passar para uma quarta etapa.
Aqui, examinaremos atentamente de que é feito o dentro e o fora de cada figura da subjetividade que se esboça. Diferentemente do que víamos no início antes de ativarmos o vibrátil de nosso olho, o que observamos agora é que dentro e fora não são meros espaços, separados por uma pele compacta que delineia um perfil de uma vez por todas. Percebemos que eles são indissociáveis e, paradoxalmente, inconciliáveis: o dentro detém o fora e o fora desmancha o dentro. Vejamos como: o dentro é uma desintensificação do movimento das forças do fora, cristalizadas temporariamente num determinado diagrama que ganha corpo numa figura com seu microcosmo; o fora é uma permanente agitação de forças que acaba desfazendo a dobra e seu dentro, diluindo a figura atual da subjetividade até que outra se perfile.
Um tanto perplexos, nos damos conta que o dentro, aqui, nada mais é do que o interior de uma dobra da pele. E reciprocamente, a pele, por sua vez, nada mais é do que o fora do dentro. A cada vez que um novo diagrama se compõe na pele, a figura que até então ela circunscrevia é como que puxada para fora de si mesma, a ponto de acabar se formando uma outra figura. É só neste sentido que podemos falar num dentro e num fora da subjetividade: o movimento de forças é o fora de todo e qualquer dentro, pois ele faz com que cada figura saia de si mesma e se torne outra. O fora é um “sempre outro do dentro”, seu devir.
Definitivamente, fora e dentro na atual etapa de nossa viagem não tem mais nada a ver com meros espaços. Pelo contrário: o fora é uma nascente de linhas de tempo que se fazem ao sabor do acaso. Cada linha de tempo que se lança é uma dobra que se concretiza e se espacializa num território de existência, seu dentro. No entanto, nenhuma concretização, nenhuma espacialização tem o poder de estancar a nascente; outras linhas de tempo vão se engendrando na pele deste dentro que acabarão por desfazê-lo. Cada figura e seu dentro dura tanto quanto a linha de tempo que a desenhou: diversos são os microuniversos possíveis, tantos quantas são as linhas de tempo.
Ao que parece, conseguimos avançar um pouco na apreensão da indissociabilidade inconciliável entre o fora e o dentro: o fora/nascente, este plano das forças, é ilimitado; enquanto que os dentros que se concretizam ou espacializam em territórios de existência são sempre finitos. Do jeito que estamos vendo as coisas, até parece que esse processo flui como água corrente - uma visão sem dúvida um tanto simplista. Temos que tentar ir mais longe e examinar quando, quanto e de que modo este processo flui de fato. É hora de passarmos para nossa quinta etapa.
Aqui, abandonaremos nosso artifício; soltaremos a pele. É que para explorar o que nos interessa nesse momento não é conveniente mantê-la distendida; pelo contrário, precisamos acompanhar a pele traçando ao vivo o contorno de diferentes figuras da subjetividade. Em compensação, teremos que refinar mais ainda a vibratibilidade de nosso olho, para captarmos com a maior acuidade possível os cenários que com certeza veremos emergir.
O que percebemos de imediato é que as coisas se complicam um pouco. Em certas subjetividades o processo de formação e dissolução de figuras parece fluir mais do que em outras - a subjetividade do artista é um exemplo disto. Notamos que efetivamente os grandes criadores culturais, seja qual for o âmbito de sua produção, tendem a ser especialmente capazes de suportar a vertigem da desestabilização provocada por uma relação de forças inusitada - aquela inquietação que há pouco víamos agitar a pele, como se algo estivesse fora do lugar. Especialmente capazes também de fazer uma dobra impulsionada por este novo diagrama, como se sua pele reagisse mais rapidamente do que as demais ao desassossêgo que ele provoca. É na obra que o artista materializa o diagrama que sente vibrar em sua pele, sem por isso corporificá-lo necessariamente em alguma nova figura de sua subjetividade, a qual diga-se de passagem pode ser das mais travadas.
Ao que parece é primeiro em microuniversos culturais e artísticos que relações de força inéditas ganham corpo e, junto com um corpo, sentido e valor. Estes microuniversos constituem cartografias - musicais, visuais, cinematográficas, teatrais, arquitetônicas, literárias, filosóficas, etc. - do ambiente sensível instaurado pelo novo diagrama. Tais cartografias ficam à disposição do coletivo afetado por este ambiente, como guias que ajudam a circular por suas desconhecidas paisagens.
Pausa: ao que tudo indica, acabamos de topar com uma confluência das paisagens da subjetividade e da cultura. Existem certamente outras, mas o que já podemos vislumbrar é que quando uma dobra se faz e, junto com ela, a criação de um mundo, não é apenas um perfil subjetivo que se delineia, mas também e indissociavelmente, um perfil cultural. Não há subjetividade sem uma cartografia cultural que lhe sirva de guia; e, reciprocamente, não há cultura sem um certo modo de subjetivação que funcione segundo seu perfil. A rigor, é impossível dissociar estas paisagens. Fim da pausa. Passemos para uma sexta etapa de nossa viagem.
Aqui, retomaremos o que estávamos explorando: quando, quanto e como fluem os processos de formação e desmanchamento de figuras. É evidente que não existem apenas subjetividades artistas; o que observamos é que este processo não flui sempre assim tão facilmente. Pelo contrário, o mais comum é ele interromper-se em vários pontos e de várias maneiras. Chamarei de “toxicomania de identidade” a modalidade de interrupção que mais se apresenta a nosso olhar: ela prolifera cada vez mais intensamente e em qualquer ponto do planeta - independentemente de país, classe social, sexo, faixa etária, cor de pele, raça, etnia, religião, ideologia, etc. Aliás o pertencimento a cada uma destas categorias é uma oportunidade para ceder ao vício de reivindicar uma identidade - vício considerado politicamente correto, beneficiando de amplo respaldo social.
O viciado em identidade tem horror ao turbilhão das linhas de tempo em sua pele. A vertigem dos efeitos do fora o ameaçam a tal ponto que para sobreviver a seu medo ele tenta anestesiar-se: deixa vibrar em sua pele, de todas as intensidades do fora, apenas aquelas que não ponham em risco sua suposta identidade. Através deste recalcamento da vibratibilidade da pele, ou seja, dos efeitos do fora no corpo, ele tem a ilusão de desacelerar o processo. Mas como é impossível impedir a formação de diagramas de força, o estado de estranhamento que tais diagramas provocam acaba se reinstaurando em sua subjetividade apesar da anestesia. Este homem se vê então obrigado a consumir algum tipo de droga se quiser manter a miragem de uma suposta identidade. Algumas são suas opções.
Nos momentos em que ainda lhe resta alguma esperança de permanecer na mesma dobra, ele procura restabelecer sua ilusória identidade que os novos diagramas vieram abalar. Neste caso, apela para fórmulas mágicas de toda espécie: de anjos à cocaína, passando pelos anti-depressivos e outras mais.
Já nos momentos em que perde toda e qualquer esperança de permanecer na mesma dobra, para manter assim mesmo sua ilusão, ele toma algumas doses de “identidade prêt-à-porter”. Trata-se de uma droga disponível em profusão no mercado da mídia, sob todas as formas e para todos os gostos: são as miragens de personagens globalizados, vencedores e invencíveis, envoltos por uma aura de incansável glamour, que habitam as etéreas ondas sonoras e visuais da mídia; personagens que parecem pairar acima das turbulências do vivo e da finitude de suas figuras. Mimetizando um destes personagens imaginários, ele passa a falar uma língua-jargão lotada de clichês, sem ancoragem em sensibilidade alguma, o que soa especialmente fake quando se trata de um repertório com uma certa sofisticação intelectual. Obviamente ele nunca chega lá, já que lá é uma miragem. E quanto mais se frustra, mais corre atrás; e quanto mais desorientado, estressado, ansioso, perseguido, culpado, deprimido, em pânico, mais ele se droga. Um círculo vicioso infernal.
Ufa, aqui a paisagem escureceu sensivelmente; o ar ficou tão carregado que mal se consegue respirar. É como se a vida estivesse definhando. Coloca-se então uma questão ética: a potência criadora da vida encontra-se em perigo.
Novamente, uma pausa. Agora parece que topamos com a segunda confluência que buscávamos, uma região onde as paisagens da subjetividade e da ética se encontram. Mas que território identifiquei como sendo o da ética? O território formado pela relação que cada indivíduo estabelece com a irremediável inconciliabilidade entre o ilimitado movimento de forças formando diagramas e a finitude dos mundos ditados por cada um deles. Por não ser possível superá-la, tal inconciliabilidade define nossa condição como trágica - existe um mal-estar que nada pode fazer ceder, já que ele é a sensação provocada pela desestabilização daquilo que somos, sensação de nossa finitude. A experiência da desestabilização, reiteradamente repetida ao longo de toda nossa existência, é efeito de um processo que nunca pára e que faz da subjetividade “um sempre outro”, “um si e não si ao mesmo tempo”. Mas o que isto tem a ver com ética? É que o quanto a vida pode fluir e afirmar-se em sua potência criadora, depende antes de mais nada da relação que se estabelece com o trágico, como se reage ao mal-estar a cada momento de nossa existência. Fecha a pausa. Passemos para a sétima e última etapa de nossa viagem.
Há muitas maneiras de se lidar com o trágico no vasto terreno da produção cultural. Numa das pontas percebemos uma negação significativa do trágico. É quando se acredita que dentro é um espaço dado cujo equilíbrio poderá ser encontrado, bastando para isso alguns truques; e no dia em que se conseguir esta proeza se terá a felicidade de ficar bovinamente instalado neste dentro para sempre.
Esta visão das coisas lembra aquela primeira etapa de nossa viagem, quando a vibratilidade do olho ainda não tinha se ativado e só dispunhamos de uma visão desatenta, pautada no senso-comum. Agora, inclusive, dá para entender porque rapidamente abandonamos aquela primeira etapa. É que é da perspectiva de uma subjetividade viciada em identidade, a qual tende a fechar-se em sua dobra, que se reduz fora e dentro a uma visão espacial - como é o caso neste pólo de negação do trágico. Esta concepção toxicômana não permite pensar a produção do novo. Me explico: se a subjetividade é simplesmente um espaço interno, formando com sua exterioridade um par de opostos numa relação de causalidade - na melhor das hipóteses, dialética -, tudo está dado desde sempre e para sempre, e não há como pensar a mudança. Mais impossível ainda pensá-la, se considerarmos que só temos acesso à exterioridade, através da projeção de um mundo interno, espécie de filme rodado com as fantasias de nossa primeira infância, que nunca pararíamos de projetar - como reza uma das versões psicanalíticas marcada por esta perspectiva espacial. Tal concepção baseia-se nitidamente numa domesticação dos efeitos das forças do fora na pele: anula-se o estado de estranhamento provocado pela condição de desconhecido de seus diagramas; neutralizam-se assim seus efeitos disruptivos. Definitivamente, esta posição é muito comprometedora do ponto de vista ético.
Já na outra ponta do terreno da produção cultural, estão as tentativas de aliar-se com as forças da processualidade: identificar os pontos de desestabilização das formas instituídas, anunciadores de sua finitude e do engendramento de outras formas. Esta aliança depende - mais do que de qualquer outro tipo de aprendizado - de estar à escuta do mal-estar mobilizado pela desestabilização em nós mesmos, da capacidade de suportá-lo e improvisar formas que dêem sentido e valor àquilo que esta incômoda sensação nos sopra. Aqui não se trata mais de alucinar um dentro para sempre feliz, mas sim de criar as condições para realizar a conquista de uma certa serenidade no sempre devir outro. Nesta empreitada, é imprescindível estarmos antenados com a produção cultural, para nos prover de recursos cartográficos que nos ajudem a inventar formas mais de acordo com o que os novos diagramas nos exigem. Senão nossas cartografias correm o risco de passar ao largo das mudanças já ocorridas na paisagem subjetiva contemporânea. O efeito provável de uma tal atitude seria o de interromper o fluxo, impedindo que novas correlações de forças encontrem vias de concretização.
Um último comentário. Aqui chegamos onde queríamos quando nos lançamos nesta empreitada: numa região onde se cruzam as paisagens da subjetividade, da ética e da cultura. É verdade que não é só nesta região que estas paisagens se encontram; o que importa no entanto aqui é a descoberta de que mais do que confluências propriamente ditas, o que liga estas três paisagens é uma transversalidade que promove diferentes composições de suas forças. Esta transversalidade é o oxigênio do vivo em sua versão humana. Sua quantidade é bastante variável ao longo de uma existência: de um grau quase zero, próprio do vetor “homem médio”, a um grau quase máximo, próprio do vetor “subjetividade artista”. Quanto mais investimos esta transversalidade, havendo-nos eticamente com o trágico e envolvendo-nos sensivelmente com a produção cultural, maior o rigor e o vigor de nossa própria produção. Encerra-se aqui nossa viagem.
* Suely Rolnik é psicanalista e Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Pós Graduação de Psicologia Clínica). Autora de Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo (1989), de Inconsciente Antropofágico. Ensaios sobre as subjetividades contemporâneas (Estação Liberdade, 1997, prelo) e, em co-autoria com Félix Guattari, de Micropolítica. Cartografias do desejo (1986, 4a ed. 1996, esgotada); organizadora da coletânea de Guattari, Pulsações políticas do desejo. Revolução Molecular (1981, 3a ed. 1987, esgotada); organizadora, com Peter P.Pelbart, do no especial “Gilles Deleuze” dos Cadernos de Subjetividade (1996). Diretora da coleção Linhas de fuga (Escuta). Tradutora, entre outros, de Mille Plateaux (Vol. III e IV), de Deleuze e Guattari (ed.34, 1997).
Bibliografia
Gilles Deleuze, Foucault. Minuit, Paris, 1986.
____________ “Louis Wolfson, ou le procédé”, in Critique et Clinique. Minuit, Paris, 1993.
____________ “Michel Foucault” e “Os intercessores”, in Conversações. Ed. 34, Rio de Janeiro, 1992.
____________Spinoza. Philosophie pratique. Minuit, Paris, 1981.
____________& Claire Parnet, Dialogues. Flammarion, Paris, 1977.
Foucault, La pensée du Dehors. Fata Morgana, Paris, 1986.
_______ “Nietzsche, a genealogia, a história”, in Microfísica do poder, org. Roberto Machado. Graal, Rio de Janeiro, 1979.
Maurice Blanchot, “Le dehors, la nuit”, in L'espace Littéraire. Gallimard, “Idées”, Paris, 1978.
_______________ “L'oubli, la déraison” e “L'absence du livre”, in L'entretien Infini. Gallimard, Paris, 1969.
_______________”La chute: la fuite” e “La terreur de l'identification”, in L'amitié. Gallimard, Paris, 1971.
Peter Pál Pelbart, Da clausura do fora ao fora da clausura. Brasiliense, São Paulo, 1989.
Nouvelle Révue de Psychanalyse no 9: 209-218, “Le Dehors et le Dedans”. Gallimard, Paris, primavera 1974 (especialmente Jean-François Lyotard, “Économie Théâtrique”).
Raymond Bellour, “La chambre”. Paris, inédito.
Suely Rolnik, “Lygia Clark e a produção de um estado de arte”. Imagens, no 4: 106-110. Campinas, Ed. Unicamp, abril 1995.
___________“O mal-estar na diferença”, Anuário Brasileiro de Psicanálise no 3: 97-103. Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1995.
___________“A multiplicação da subjetividade”, “Mais!”, Folha de São Paulo. São Paulo, 19/05/96; p. 3/5.
___________“Guerra dos gêneros & Guerra aos gêneros”, Estudos Feministas Vol. 5, no 1/96. IFCS/UFRJ, PPCIS/UERJ, Rio de Janeiro.
___________“Lygia Clark e o híbrido arte/clínica”, Percurso - Revista de Psicanálise, Ano VIII, no 16:43-48, 1o semestre de 1996. Departamento de Psicanálise, Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo.
Tem início aqui uma inusitada viagem ao mundo da subjetividade. Uma especial curiosidade em conhecer suas regiões fronteiriças com a ética e a cultura estará nos direcionando ao longo das sete etapas desta aventura.
Primeira etapa. Ainda estamos um tanto distraídos. Por ora, o que vislumbramos da subjetividade é o perfil de um modo de ser - de pensar, de agir, de sonhar, de amar, etc. - que recorta o espaço, formando um interior e um exterior. Nosso olhar desatento vê na pele que traça este perfil uma superfície compacta e uma certa quietude. Isso nos faz pensar que este perfil é imutável, assim como o interior e o exterior que ele separa. Não vale a pena nos demorarmos nesta visão mais banal. Passemos imediatamente para uma segunda etapa de nossa viagem.
Aqui convocaremos, de nosso olho, uma certa potencialidade que qualificarei de “vibrátil”, que faz com que o olho seja tocado pela força do que vê. Sem muita dificuldade, logo notamos que a densidade desta pele é ilusória e efêmero é o perfil que ela envolve e delineia. A pele é um tecido vivo e móvel, feito das forças/fluxos que compõem os meios variáveis que habitam a subjetividade: meio profissional, familiar, sexual, econômico, político, cultural, informático, turístico, etc. Como estes meios, além de variarem ao longo do tempo, fazem entre si diferentes combinações, outras forças entram constantemente em jôgo, que vão misturar-se às já existentes, numa dinâmica incessante de atração e repulsa. Formam-se na pele constelações as mais diversas que vão se acumulando até que um diagrama inusitado de relações de força se configure. Nesse momento, nosso olho vibrátil capta na pele uma certa inquietação, como se algo estivesse fora do lugar ou de foco. A esta altura de nossa viagem, não conseguimos saber muito mais do que isso. Passemos então para uma terceira etapa.
Aqui, recorreremos a um artifício um tanto insólito: vamos estender a pele, desfazendo o perfil que ela desenha, de modo a transformá-la numa superfície plana. O que nosso olho vibrátil presencia então é a pele começando a reagir ao incômodo causado pelo novo diagrama: ela se dobra, fazendo uma espécie de curvatura. Surpresos, vemos emergir no interior desta dobra, o cenário de todo um modo de existência. É como se o diagrama que dá à pele sua atual tessitura, tivesse se corporificado num microuniverso. Reencontramos aqui um perfil de subjetividade, porém ele não é o mesmo que víamos no comêço. Fascinados, resolvemos não seguir adiante e nos demorarmos mais tempo nessa etapa de nossa viagem.
O que logo observamos é que outros fluxos vão entrando na composição da pele, formando outras constelações e que, aos poucos, outros diagramas de relações de força emergem e assim sucessivamente. A cada vez que um diagrama se forma, a pele se curva novamente. Nesta dinâmica, onde havia uma dobra, ela se desfaz; a pele volta a estender-se, ao mesmo tempo que se curva em outro lugar e de outro jeito; um perfil se dilui, enquanto outro se esboça. O que fica claro é que cada modo de existência é uma dobra da pele que delineia o perfil de uma determinada figura da subjetividade. Agora, sim, podemos passar para uma quarta etapa.
Aqui, examinaremos atentamente de que é feito o dentro e o fora de cada figura da subjetividade que se esboça. Diferentemente do que víamos no início antes de ativarmos o vibrátil de nosso olho, o que observamos agora é que dentro e fora não são meros espaços, separados por uma pele compacta que delineia um perfil de uma vez por todas. Percebemos que eles são indissociáveis e, paradoxalmente, inconciliáveis: o dentro detém o fora e o fora desmancha o dentro. Vejamos como: o dentro é uma desintensificação do movimento das forças do fora, cristalizadas temporariamente num determinado diagrama que ganha corpo numa figura com seu microcosmo; o fora é uma permanente agitação de forças que acaba desfazendo a dobra e seu dentro, diluindo a figura atual da subjetividade até que outra se perfile.
Um tanto perplexos, nos damos conta que o dentro, aqui, nada mais é do que o interior de uma dobra da pele. E reciprocamente, a pele, por sua vez, nada mais é do que o fora do dentro. A cada vez que um novo diagrama se compõe na pele, a figura que até então ela circunscrevia é como que puxada para fora de si mesma, a ponto de acabar se formando uma outra figura. É só neste sentido que podemos falar num dentro e num fora da subjetividade: o movimento de forças é o fora de todo e qualquer dentro, pois ele faz com que cada figura saia de si mesma e se torne outra. O fora é um “sempre outro do dentro”, seu devir.
Definitivamente, fora e dentro na atual etapa de nossa viagem não tem mais nada a ver com meros espaços. Pelo contrário: o fora é uma nascente de linhas de tempo que se fazem ao sabor do acaso. Cada linha de tempo que se lança é uma dobra que se concretiza e se espacializa num território de existência, seu dentro. No entanto, nenhuma concretização, nenhuma espacialização tem o poder de estancar a nascente; outras linhas de tempo vão se engendrando na pele deste dentro que acabarão por desfazê-lo. Cada figura e seu dentro dura tanto quanto a linha de tempo que a desenhou: diversos são os microuniversos possíveis, tantos quantas são as linhas de tempo.
Ao que parece, conseguimos avançar um pouco na apreensão da indissociabilidade inconciliável entre o fora e o dentro: o fora/nascente, este plano das forças, é ilimitado; enquanto que os dentros que se concretizam ou espacializam em territórios de existência são sempre finitos. Do jeito que estamos vendo as coisas, até parece que esse processo flui como água corrente - uma visão sem dúvida um tanto simplista. Temos que tentar ir mais longe e examinar quando, quanto e de que modo este processo flui de fato. É hora de passarmos para nossa quinta etapa.
Aqui, abandonaremos nosso artifício; soltaremos a pele. É que para explorar o que nos interessa nesse momento não é conveniente mantê-la distendida; pelo contrário, precisamos acompanhar a pele traçando ao vivo o contorno de diferentes figuras da subjetividade. Em compensação, teremos que refinar mais ainda a vibratibilidade de nosso olho, para captarmos com a maior acuidade possível os cenários que com certeza veremos emergir.
O que percebemos de imediato é que as coisas se complicam um pouco. Em certas subjetividades o processo de formação e dissolução de figuras parece fluir mais do que em outras - a subjetividade do artista é um exemplo disto. Notamos que efetivamente os grandes criadores culturais, seja qual for o âmbito de sua produção, tendem a ser especialmente capazes de suportar a vertigem da desestabilização provocada por uma relação de forças inusitada - aquela inquietação que há pouco víamos agitar a pele, como se algo estivesse fora do lugar. Especialmente capazes também de fazer uma dobra impulsionada por este novo diagrama, como se sua pele reagisse mais rapidamente do que as demais ao desassossêgo que ele provoca. É na obra que o artista materializa o diagrama que sente vibrar em sua pele, sem por isso corporificá-lo necessariamente em alguma nova figura de sua subjetividade, a qual diga-se de passagem pode ser das mais travadas.
Ao que parece é primeiro em microuniversos culturais e artísticos que relações de força inéditas ganham corpo e, junto com um corpo, sentido e valor. Estes microuniversos constituem cartografias - musicais, visuais, cinematográficas, teatrais, arquitetônicas, literárias, filosóficas, etc. - do ambiente sensível instaurado pelo novo diagrama. Tais cartografias ficam à disposição do coletivo afetado por este ambiente, como guias que ajudam a circular por suas desconhecidas paisagens.
Pausa: ao que tudo indica, acabamos de topar com uma confluência das paisagens da subjetividade e da cultura. Existem certamente outras, mas o que já podemos vislumbrar é que quando uma dobra se faz e, junto com ela, a criação de um mundo, não é apenas um perfil subjetivo que se delineia, mas também e indissociavelmente, um perfil cultural. Não há subjetividade sem uma cartografia cultural que lhe sirva de guia; e, reciprocamente, não há cultura sem um certo modo de subjetivação que funcione segundo seu perfil. A rigor, é impossível dissociar estas paisagens. Fim da pausa. Passemos para uma sexta etapa de nossa viagem.
Aqui, retomaremos o que estávamos explorando: quando, quanto e como fluem os processos de formação e desmanchamento de figuras. É evidente que não existem apenas subjetividades artistas; o que observamos é que este processo não flui sempre assim tão facilmente. Pelo contrário, o mais comum é ele interromper-se em vários pontos e de várias maneiras. Chamarei de “toxicomania de identidade” a modalidade de interrupção que mais se apresenta a nosso olhar: ela prolifera cada vez mais intensamente e em qualquer ponto do planeta - independentemente de país, classe social, sexo, faixa etária, cor de pele, raça, etnia, religião, ideologia, etc. Aliás o pertencimento a cada uma destas categorias é uma oportunidade para ceder ao vício de reivindicar uma identidade - vício considerado politicamente correto, beneficiando de amplo respaldo social.
O viciado em identidade tem horror ao turbilhão das linhas de tempo em sua pele. A vertigem dos efeitos do fora o ameaçam a tal ponto que para sobreviver a seu medo ele tenta anestesiar-se: deixa vibrar em sua pele, de todas as intensidades do fora, apenas aquelas que não ponham em risco sua suposta identidade. Através deste recalcamento da vibratibilidade da pele, ou seja, dos efeitos do fora no corpo, ele tem a ilusão de desacelerar o processo. Mas como é impossível impedir a formação de diagramas de força, o estado de estranhamento que tais diagramas provocam acaba se reinstaurando em sua subjetividade apesar da anestesia. Este homem se vê então obrigado a consumir algum tipo de droga se quiser manter a miragem de uma suposta identidade. Algumas são suas opções.
Nos momentos em que ainda lhe resta alguma esperança de permanecer na mesma dobra, ele procura restabelecer sua ilusória identidade que os novos diagramas vieram abalar. Neste caso, apela para fórmulas mágicas de toda espécie: de anjos à cocaína, passando pelos anti-depressivos e outras mais.
Já nos momentos em que perde toda e qualquer esperança de permanecer na mesma dobra, para manter assim mesmo sua ilusão, ele toma algumas doses de “identidade prêt-à-porter”. Trata-se de uma droga disponível em profusão no mercado da mídia, sob todas as formas e para todos os gostos: são as miragens de personagens globalizados, vencedores e invencíveis, envoltos por uma aura de incansável glamour, que habitam as etéreas ondas sonoras e visuais da mídia; personagens que parecem pairar acima das turbulências do vivo e da finitude de suas figuras. Mimetizando um destes personagens imaginários, ele passa a falar uma língua-jargão lotada de clichês, sem ancoragem em sensibilidade alguma, o que soa especialmente fake quando se trata de um repertório com uma certa sofisticação intelectual. Obviamente ele nunca chega lá, já que lá é uma miragem. E quanto mais se frustra, mais corre atrás; e quanto mais desorientado, estressado, ansioso, perseguido, culpado, deprimido, em pânico, mais ele se droga. Um círculo vicioso infernal.
Ufa, aqui a paisagem escureceu sensivelmente; o ar ficou tão carregado que mal se consegue respirar. É como se a vida estivesse definhando. Coloca-se então uma questão ética: a potência criadora da vida encontra-se em perigo.
Novamente, uma pausa. Agora parece que topamos com a segunda confluência que buscávamos, uma região onde as paisagens da subjetividade e da ética se encontram. Mas que território identifiquei como sendo o da ética? O território formado pela relação que cada indivíduo estabelece com a irremediável inconciliabilidade entre o ilimitado movimento de forças formando diagramas e a finitude dos mundos ditados por cada um deles. Por não ser possível superá-la, tal inconciliabilidade define nossa condição como trágica - existe um mal-estar que nada pode fazer ceder, já que ele é a sensação provocada pela desestabilização daquilo que somos, sensação de nossa finitude. A experiência da desestabilização, reiteradamente repetida ao longo de toda nossa existência, é efeito de um processo que nunca pára e que faz da subjetividade “um sempre outro”, “um si e não si ao mesmo tempo”. Mas o que isto tem a ver com ética? É que o quanto a vida pode fluir e afirmar-se em sua potência criadora, depende antes de mais nada da relação que se estabelece com o trágico, como se reage ao mal-estar a cada momento de nossa existência. Fecha a pausa. Passemos para a sétima e última etapa de nossa viagem.
Há muitas maneiras de se lidar com o trágico no vasto terreno da produção cultural. Numa das pontas percebemos uma negação significativa do trágico. É quando se acredita que dentro é um espaço dado cujo equilíbrio poderá ser encontrado, bastando para isso alguns truques; e no dia em que se conseguir esta proeza se terá a felicidade de ficar bovinamente instalado neste dentro para sempre.
Esta visão das coisas lembra aquela primeira etapa de nossa viagem, quando a vibratilidade do olho ainda não tinha se ativado e só dispunhamos de uma visão desatenta, pautada no senso-comum. Agora, inclusive, dá para entender porque rapidamente abandonamos aquela primeira etapa. É que é da perspectiva de uma subjetividade viciada em identidade, a qual tende a fechar-se em sua dobra, que se reduz fora e dentro a uma visão espacial - como é o caso neste pólo de negação do trágico. Esta concepção toxicômana não permite pensar a produção do novo. Me explico: se a subjetividade é simplesmente um espaço interno, formando com sua exterioridade um par de opostos numa relação de causalidade - na melhor das hipóteses, dialética -, tudo está dado desde sempre e para sempre, e não há como pensar a mudança. Mais impossível ainda pensá-la, se considerarmos que só temos acesso à exterioridade, através da projeção de um mundo interno, espécie de filme rodado com as fantasias de nossa primeira infância, que nunca pararíamos de projetar - como reza uma das versões psicanalíticas marcada por esta perspectiva espacial. Tal concepção baseia-se nitidamente numa domesticação dos efeitos das forças do fora na pele: anula-se o estado de estranhamento provocado pela condição de desconhecido de seus diagramas; neutralizam-se assim seus efeitos disruptivos. Definitivamente, esta posição é muito comprometedora do ponto de vista ético.
Já na outra ponta do terreno da produção cultural, estão as tentativas de aliar-se com as forças da processualidade: identificar os pontos de desestabilização das formas instituídas, anunciadores de sua finitude e do engendramento de outras formas. Esta aliança depende - mais do que de qualquer outro tipo de aprendizado - de estar à escuta do mal-estar mobilizado pela desestabilização em nós mesmos, da capacidade de suportá-lo e improvisar formas que dêem sentido e valor àquilo que esta incômoda sensação nos sopra. Aqui não se trata mais de alucinar um dentro para sempre feliz, mas sim de criar as condições para realizar a conquista de uma certa serenidade no sempre devir outro. Nesta empreitada, é imprescindível estarmos antenados com a produção cultural, para nos prover de recursos cartográficos que nos ajudem a inventar formas mais de acordo com o que os novos diagramas nos exigem. Senão nossas cartografias correm o risco de passar ao largo das mudanças já ocorridas na paisagem subjetiva contemporânea. O efeito provável de uma tal atitude seria o de interromper o fluxo, impedindo que novas correlações de forças encontrem vias de concretização.
Um último comentário. Aqui chegamos onde queríamos quando nos lançamos nesta empreitada: numa região onde se cruzam as paisagens da subjetividade, da ética e da cultura. É verdade que não é só nesta região que estas paisagens se encontram; o que importa no entanto aqui é a descoberta de que mais do que confluências propriamente ditas, o que liga estas três paisagens é uma transversalidade que promove diferentes composições de suas forças. Esta transversalidade é o oxigênio do vivo em sua versão humana. Sua quantidade é bastante variável ao longo de uma existência: de um grau quase zero, próprio do vetor “homem médio”, a um grau quase máximo, próprio do vetor “subjetividade artista”. Quanto mais investimos esta transversalidade, havendo-nos eticamente com o trágico e envolvendo-nos sensivelmente com a produção cultural, maior o rigor e o vigor de nossa própria produção. Encerra-se aqui nossa viagem.
* Suely Rolnik é psicanalista e Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Pós Graduação de Psicologia Clínica). Autora de Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo (1989), de Inconsciente Antropofágico. Ensaios sobre as subjetividades contemporâneas (Estação Liberdade, 1997, prelo) e, em co-autoria com Félix Guattari, de Micropolítica. Cartografias do desejo (1986, 4a ed. 1996, esgotada); organizadora da coletânea de Guattari, Pulsações políticas do desejo. Revolução Molecular (1981, 3a ed. 1987, esgotada); organizadora, com Peter P.Pelbart, do no especial “Gilles Deleuze” dos Cadernos de Subjetividade (1996). Diretora da coleção Linhas de fuga (Escuta). Tradutora, entre outros, de Mille Plateaux (Vol. III e IV), de Deleuze e Guattari (ed.34, 1997).
Bibliografia
Gilles Deleuze, Foucault. Minuit, Paris, 1986.
____________ “Louis Wolfson, ou le procédé”, in Critique et Clinique. Minuit, Paris, 1993.
____________ “Michel Foucault” e “Os intercessores”, in Conversações. Ed. 34, Rio de Janeiro, 1992.
____________Spinoza. Philosophie pratique. Minuit, Paris, 1981.
____________& Claire Parnet, Dialogues. Flammarion, Paris, 1977.
Foucault, La pensée du Dehors. Fata Morgana, Paris, 1986.
_______ “Nietzsche, a genealogia, a história”, in Microfísica do poder, org. Roberto Machado. Graal, Rio de Janeiro, 1979.
Maurice Blanchot, “Le dehors, la nuit”, in L'espace Littéraire. Gallimard, “Idées”, Paris, 1978.
_______________ “L'oubli, la déraison” e “L'absence du livre”, in L'entretien Infini. Gallimard, Paris, 1969.
_______________”La chute: la fuite” e “La terreur de l'identification”, in L'amitié. Gallimard, Paris, 1971.
Peter Pál Pelbart, Da clausura do fora ao fora da clausura. Brasiliense, São Paulo, 1989.
Nouvelle Révue de Psychanalyse no 9: 209-218, “Le Dehors et le Dedans”. Gallimard, Paris, primavera 1974 (especialmente Jean-François Lyotard, “Économie Théâtrique”).
Raymond Bellour, “La chambre”. Paris, inédito.
Suely Rolnik, “Lygia Clark e a produção de um estado de arte”. Imagens, no 4: 106-110. Campinas, Ed. Unicamp, abril 1995.
___________“O mal-estar na diferença”, Anuário Brasileiro de Psicanálise no 3: 97-103. Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1995.
___________“A multiplicação da subjetividade”, “Mais!”, Folha de São Paulo. São Paulo, 19/05/96; p. 3/5.
___________“Guerra dos gêneros & Guerra aos gêneros”, Estudos Feministas Vol. 5, no 1/96. IFCS/UFRJ, PPCIS/UERJ, Rio de Janeiro.
___________“Lygia Clark e o híbrido arte/clínica”, Percurso - Revista de Psicanálise, Ano VIII, no 16:43-48, 1o semestre de 1996. Departamento de Psicanálise, Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo.
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