sábado, 8 de fevereiro de 2014
O livro invisível de William Burroughs
Floriano Martins
(Brasil, 1957).
Poeta, editor, ensaísta, tradutor.
Coordenador geral do Projeto Editorial Banda
Hispânica.
Estudioso do surrealismo, sendo autor de livros
sobre o tema, incluindo a única antologia existente que abrange
a produção poética do surrealismo em todo o continente
americano (Monte Ávila Editores, Venezuela, 2007).
Curador da
Bienal Internacional do Livro do Ceará (2008).
Professor
convidado da Universidade de Cincinatti (Ohio, Estados
Unidos, 2010). Contato: floriano.agulha@gmail.com.
(Noite fria de 11 de agosto de 1999.
Teatro da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Em continuidade ao Ciclo de Palestras “Os limites da literatura: autores rebeldes, excêntricos, marginais, malditos”, tem lugar a leitura dramática de O livro invisível de William Burroughs, uma colagem de textos de William Burroughs e Floriano Martins, realizada por este último.
Os atores que participam são Graça Berman (BURROUGHS 1), Pascoal da Conceição (BURROUGHS 2), Claudio Willer (BURROUGHS 3), e Floriano Martins(CONFERENCISTA). Palco às escuras. No canto direito acende-se a luz de uma luminária sobre uma mesa tomada de papéis, garrafa de vinho, copo, cinzeiro.
Nela se encontra sentado o CONFERENCISTA a remexer nos papéis. Acende um cigarro, põe vinho no copo, bebe.
Enquanto isto vão entrando BURROUGHS 2 e BURROUGHS 3, usando chapéu e sobretudo, pegando duas cadeiras espalhadas e sentando na outra extremidade do palco. CONFERENCISTA segue arrumando seus papéis, como se nada estivesse acontecendo ao seu redor. De um ponto à esquerda da platéia ouve-se a voz de BURROUGHS 1, compassadamente. Durante todas as cenas, sua voz será ouvida de distintos lugares da platéia.)
BURROUGHS 1
Não há nenhum outro lugar para se ir
O teatro está fechado
Cortem linhas de música
Não há nenhum outro lugar para se ir
O teatro está fechado
Cortem linhas de palavra
Esmaguem as imagens de controle
Esmaguem a máquina de controle
(BURROUGHS 2 inicia um diálogo com BURROUGHS 1.
CONFERENCISTA permanece arrumando seus papéis.)
BURROUGHS 2 Sim, a vida é um corte. Toda vez que você
caminha rua abaixo, ou mesmo olha pela janela, sua
consciência é continuamente cortada por fatores fortuitos.
Tento tornar isto explícito cortando palavras. Esta é a minha
teoria sobre arte. A arte está alertando o homem sobre si
mesmo, ressaltando os fatos atuais da percepção.
BURROUGHS 1 Mas diga-me, meu caro Burroughs, acaso a
capacidade de ver o que temos à frente é uma forma de
escapar da imagem-prisão que nos rodeia?
BURROUGHS 2 Decididamente, sim. Porém muito pouca gente
tem esta capacidade, e cada vez serão menos, conforme
passe o tempo.
BURROUGHS 1 Por que?
BURROUGHS 2 Por uma razão: a absoluta barreira de imagens
a que estamos submetidos acabará por nos embotar a todos.
Recorde, em comparação, que há cem anos havia poucas
imagens. As pessoas viviam em um cenário mais simples, em
um meio ambiente camponês, tropeçavam em poucas
imagens, e essas poucas eram vistas com bastante clareza.
Porém se alguém é bombardeado, sem descanso, com a
propaganda inscrita nos caminhões ou táxis que passam…
BURROUGHS 1 …com as imagens da televisão e dos jornais…
BURROUGHS 2 …sim, com as imagens da televisão e dos
jornais, esse alguém acaba embotado. Forma-se uma névoa
permanente diante dos olhos e já não se vê nada.
BURROUGHS 1 E o que se deveria ver?
BURROUGHS 2 Que não há nada interposto entre uma pessoa
e a imagem. Um granjeiro vê suas vacas de verdade: vê o que
tem diante de si e o vê bem claro. Não é um problema de
hábito: o problema é que algo se coloque entre alguém e a
imagem, de tal forma que o impeça de vê-la. Não quero dizer
que o granjeiro tenha nenhum tipo de identificação mística
com a vaca, mas sim que sabe quando a vaca não está bem.
Ele sabe tudo o que se refere à vaca, a forma com que a vaca
lhe é útil e como se encaixa em seu meio ambiente.
BURROUGHS 1 Todo esse desejo de clareza não entra em
conflito com as infinitas possibilidades exploratórias de teu
método de criação?
BURROUGHS 2 Quando a gente fala de clareza na escritura, de
uma forma comum, refere-se à trama, à continuidade, à
apresentação, ao nó e ao desenlace, à adesão a uma ordem
lógica. Porém as coisas não ocorrem por acomodação a uma
ordem lógica. Nenhum escritor que pretenda aproximar-se
do que verdadeiramente ocorre na mente humana e no corpo
de seus personagens pode restringir-se a uma estrutura tão
arbitrária como a ordem lógica. Joyce foi acusado de ser
ininteligível, e note que se limitava a apresentar apenas um
nível de fatos mentais: o monólogo consciente sub-oral.
Penso que é possível criar acontecimentos polinivelados e
personagens que o leitor possa compreender
comprometendo seu ser orgânico.
(O diálogo é interrompido pela voz de BURROUGHS 3, à
direita.)
BURROUGHS 3 A estrada é tortuosa e improvável. A passagem
hoje fácil é a ratoeira de amanhã. O caminho óbvio, a maior
parte das vezes, é o caminho dos tolos. E cuidado com os
caminhos do meio, os da moderação, do bom senso e do
cauteloso planejamento. Contudo, isso não quer dizer que
não haja sempre tempo para a moderação, o bom senso e o
planejamento. Pode-se afirmar que qualquer plano de
imortalidade que não dependa do prolongamento da vida do
corpo físico, do seu remendo e conserto, como se faz com
carros antigos, é a pior forma de planejamento que existe. É
como apostar em um favorito e dobrar a aposta quando ele
perde. Em vez de uma pessoa se separar do corpo, a pessoa
passa o tempo a afundar em seu próprio corpo, tornando-se
assim cada vez mais dependente dele: dependente de cada
respiração roubada aos pulmões transplantados, de cada
ejaculação do renovado falo, de cada excreção dos intestinos
novos. Só que o caminho das transplantações atrai idiotas
que se fartam. Assim é que são muito poucos os peregrinos
que chegam vivos à cidade da Última Oportunidade.
Preguiça, indulgência, álcool, vícios de toda ordem, velhice,
estupidez, tudo isso são obstáculos. Mas a falta de uma
coragem especial é a principal barreira, a única que é insuperável: a coragem de enfrentar o opositor, o inimigo
final. Sem tal coragem, nunca se chega à Última
Oportunidade. Nem se consegue voltar ao princípio. E para
se sair da Última Oportunidade é necessário ser o vencedor
de um duelo travado até à morte.
BURROUGHS 1 Quem fala?
BURROUGHS 2 O que diabos importa?
BURROUGHS 1 Quantos de vocês estão aqui?
BURROUGHS 2 O que diabos importa?
BURROUGHS 1 Quantos?
BURROUGHS 2 Nem se consegue voltar ao princípio.
BURROUGHS 3 Nós, poetas e escritores, somos muito
arrumadinhos. Desaparecemos nas noites de vaga-lumes,
um passeio e um apito de trem ao longe. Vivemos dentro da
empregada que descasca um ovo cozido para alguém
convalescente há muito curado. Vivemos no último e no
maior dos sonhos da humanidade.
BURROUGHS 2 O que diabos importa?
BURROUGHS 1 Quem fala?
BURROUGHS 3 Eu vivia em um quarto no bairro nativo de
Tânger. Não tomava banho havia um ano, nem trocava
minhas roupas ou as tirava do corpo, exceto para espetar
uma agulha de hora em hora na carne de madeira fibrosa e
cinzenta do vício terminal. Nunca limpei ou espanei o
quarto. Caixas de ampolas vazias e lixo se empilhavam até o
teto. Luz e água tinham sido cortadas havia tempo por falta
de pagamento. Eu não fazia absolutamente nada. Conseguia
olhar para a ponta dos meus sapatos por oito horas seguidas.
Só me movia quando terminava a provisão de droga. Se um
amigo ia me visitar, eu ficava sentado, sem me importar que
ele tivesse entrado no meu campo visual, ou que saísse dele.
Se morresse ali, na minha frente, eu ficaria a olhar para o
meu sapato, à espera de poder revistar seus bolsos. Você não? Pois eu nunca tinha droga suficiente. Ninguém jamais
tem.
BURROUGHS 2 Eu estava simplesmente pronto para me
acabar.
BURROUGHS 1 Alguém raramente aparecia?
BURROUGHS 2 Tolo.
BURROUGHS 3 O que restava para ser visitado?
BURROUGHS 2 O que diabos realmente importa?
(Apagam-se as luzes sobre as duas cadeiras, enquanto no
centro do palco, mais ao fundo, um filete de luz incide
sobre um caixote no qual se encontra um boneco de
ventríloquo. Ouve-se então a voz de WB, em off, lendo “T’
‘ain’t no sin”. Enquanto isto BURROUGHS 3 perambula
por todos os lados do palco, imitando com deboche o jeito
de WB ler. Ao final do poema, ouve-se sua própria voz,
relendo o poema de maneira bastante caricatural. Ao
concluir a leitura, retorna a seu lugar.)
(T’ ‘AIN’T NO SIN)
When you hear sweet syncopation
And the music softly moans
T’ ‘ain’t no sin to take off your skin
And dance around in your bones
When it gets too hot for comfort
And you can’t get an ice cream cone
T’ ‘ain’t no sin to take off your skin
And dance around in your bones
Just like those bamboo babies
Down in the South Sea tropic zone
T’ ‘ain’t no sin to take off your skin
And dance around in your bones
(NÃO É PECADO)
Quando você escutar tão doce síncope
E a música lamentar-se suavemente
Não é pecado arrancar sua pele
E dançar ao redor de seus ossos
Quando ficar muito quente e desconfortável
E você não conseguir um sorvete de casquinha
Não é pecado arrancar sua pele
E dançar ao redor de seus ossos
Assim como aqueles agitados garotos
Na área tropical dos mares do sul
Não é pecado arrancar sua pele
E dançar ao redor de seus ossos
(Apaga-se a luz, permanecendo acesa apenas a luminária
sobre a mesa. Tem início a primeira parte da conferência.
Quando da leitura dos trechos entre parênteses,
BURROUGHS 2 se movimenta em seu lugar como se
fosse ele que estivesse falando. Durante toda a
conferência será projetado um vídeo com uma montagem
de alguém escrevendo, recortando, colando textos e
imagens, exceto durante os trechos entre parênteses
quando o foco do projeto é coberto por uma mão.)
CONFERENCISTA O que se passa em sua mente? Nada
comparável a isso. As idéias distintas que podemos ter
acerca do mesmo símbolo. Duas ou mais noções da origem
de um mesmo objeto. Descartes havia chamado a atenção
para as idéias do sol que podemos ter em nossa mente, ou
seja, as idéias acidentais e as idéias conceituais, criadas a
partir de algumas noções que trazemos inatas em nós.
(Descobri que quando estou preparando uma página de meu
álbum de recortes, quase invariavelmente sonho à noite com
alguma coisa relacionada a essa justaposição de palavra e
imagem. Na verdade, o sonho não passa de certa
justaposição de palavra e imagem. Em outras palavras, tenho
me interessado precisamente pela movimentação de palavra
e imagem em linhas de associação muito, muito complexas.
Faço uma porção de exercícios naquilo que chamo de viagem
no tempo, tomando coordenadas, tal como o que fotografei
no trem, o que eu estava pensando naquele momento, o que
estava lendo e o que escrevi. Tudo isso para ver o quanto eu
consigo me lançar de volta, completamente, naquele
determinado ponto do tempo.)
Segundo a astronomia, não existe matéria nova no universo,
estando todas as formas constituídas dos mesmos elementos
já conhecidos por todos nós. O que vale para classificar as
estrelas talvez possa ser igualmente útil para entender a
mente humana.
(Os álbuns de recortes e a viagem no tempo são exercícios
para expandir a consciência, para me ensinar a pensar em
blocos de associação mais do que em palavras.
Recentemente passei um tempo estudando sistemas
hieroglíficos, o egípcio e o maia. Todo um bloco de
associações… bum!… assim! As palavras – pelo menos do
jeito que as usamos – podem ser obstáculos ao que chamo de
experiência incorpórea. Já é tempo de pensarmos em deixar
o corpo para trás.)
Se eu retorno a distantes ambientações de minha memória,
percebo formas idênticas à que concebo hoje, vibrando em
um mesmo ritmo, o que certamente me permite especular
sobre as formas que um dia conceberei como aparentemente
novas.
(O que quero fazer é aprender a ver mais o que está lá fora, a
olhar para fora, atingir tanto quanto possível uma completa
percepção do que nos cerca. A maioria das pessoas não vê o
que está acontecendo à sua volta. Esta é a minha principal
mensagem para os escritores: pelo amor de Deus,
mantenham seus olhos abertos. Percebam o que está
acontecendo à sua volta.)
A criação artística alcança um estágio além do pessoal,
porque depende de um processo de ordenação que é
principalmente inconsciente e, portanto, não desejado
deliberadamente pelo artista. O fato da criação artística ser
um produto do cérebro, isto não significa que deva ser
voluntária. O cérebro opera de uma maneira misteriosa que não está sob o controle voluntário. Às vezes devemos deixá-
lo em paz para que funcione ao máximo.
(Se Nova Express é um cut-up de muitos escritores? Joyce
está lá. Shakespeare, Rimbaud, alguns escritores de quem as
pessoas não ouviram falar, alguém chamado Jack Stern. Há
Kerouac. Não sei, quando você começa a fazer essas
dobraduras (fold-in) e recortes (cut-up), você perde a conta.
Genet, claro, é alguém que admiro muito. Mas o que ele está
fazendo é prosa clássica francesa. Ele não é um inovador
verbal. Também Kafka, Eliot; e um dos meus favoritos é
Joseph Conrad. E Richard Hughes. Quem mais? Espere um
minuto, vou checar os meus livros de coordenadas para ver
se há alguém que esqueci.)
Haveria então uma lei da causalidade, o que fundamentaria
a noção de unidade orgânica do universo. O recorte de um
cérebro ou de uma estrela não se distinguiria pela substância
de que é feito, mas sim pelo movimento que proporcionaria
a tudo que estivesse à sua volta.
(Esse não é o modo como ocorrem as coisas. Sinto que a
construção aristotélica é uma das grandes algemas da
civilização ocidental. Os cut-ups são um movimento em
direção à derrubada disso.)
Os arquétipos que o poeta concebe durante seus sonhos ou
estados de possessão provêm de seu próprio inconsciente, e
tornam-se conscientes ao perceber, escrever ou recordá-los.
(As pessoas me dizem, “Ah, é tudo muito bom, mas você o
conseguiu por cut-up”. Digo que isso não tem nada a ver,
como eu consegui. O que é qualquer texto senão um cut-up?
Alguém tem que programar a máquina, alguém tem que
fazer o cut-up? Lembre-se de que primeiro fiz uma seleção.
De centenas de sentenças possíveis que poderia ter usado,
escolhi uma.)
Como arrancar de cada coisa o julgamento que lhe afirma
um sentido único, uma espécie de dimensão funcional? A
suspensão do juízo seria uma maneira pertinente de ver uma
coisa sem perceber outra, ou seja, de igualar visão e
percepção. No entanto, o homem optou por sobrecarregar
cada coisa de um sem número de sentidos, uma espécie de
acumulação obsessiva de sentidos. O que pode ser visto
como um novo desafio para a imaginação: restaurar o
sentido original de cada coisa, soterrado sob demãos e
demãos de idéias acidentais e conceituais. (...)
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