domingo, 13 de abril de 2014

Ro Steinke por Rafael Tenório



Maradona por Kusturica (Emir Kusturica, 2008)

Kusturica por Maradona




O que podemos chamar de objeto óbvio do documentário em questão
seria, em qualquer lugar do mundo, polêmico e provocativo. No Brasil, então, o grau de provocação é
elevado à quinta potência, afinal, não há como negar: Maradona foi, é e será um eterno causador de
discórdias, que divide torcedores entre a adoração e a execração. Contribuindo com essa visão, o diretor
iugoslavo Emir Kusturica trata o tema de forma parcial, ovacionando seu ídolo de forma cega, quase
ingênua, como se os defeitos do jogador fossem também suas qualidades, elementos de um conjunto de
pré-requisitos que fazem de Maradona o melhor jogador do mundo.
Se algum brasileiro concorda com essa visão, tenho confiança de que jamais assumiria isso, talvez nem
mesmo para si, mas aquiescer com esse ponto de vista não é importante para apreciar esse filme. Ele
cativa, pouco a pouco, fazendo com que o espectador abandone gradualmente o sentimento de indignação
para simpatizar-se com o diretor, com a narrativa e com o próprio jogador.
Kusturica utiliza animações, registros quase encenados para a câmera sem a presença do diretor, imagens
de arquivos e, principalmente, entrevistas e registros intermediados por Emir Kusturica, costurando uma
trajetória de vida conturbada. Ao buscar seu tema, o diretor parece uma criança, nervosa e ansiosa pelo
encontro com seu ídolo, enquanto o jogador, embora fale de forma aberta sobre assuntos como o gol de
La Mano de Dios, parece contar uma história batida e quase encenada, sem muita espontaneidade ou
simpatia.



Kusturica constrói Maradona como um revolucionário que escolheu o esporte como forma de expressão,
“o Sex Pistols do futebol”, que experimentou todo o tipo de diversão e autodestruição, renascendo das
cinzas, com uma abordagem ingênua e incômoda, como a demonstração de um fanatismo infantil que se
constrói através de uma parcialidade óbvia. Um dos encantos do filme, no entanto, está no avançar da
relação de Kusturica e Maradona, quando ela se estreita e o jogador parece deixar de encenar enquanto
expõe idéias e facetas que ganham a simpatia do espectador. Ao mesmo tempo, o diretor abandona a
visão de adoração de um ídolo e passa a admirar o homem que está diante dele, tanto pela trajetória
profissional quanto, principalmente, pela trajetória de vida. E dessa forma, engraçado, sincero,
provocador e ágil, Maradona revela ser mais um showman do que um jogador de futebol, um
revolucionário, ou um Deus.
No entanto, por mais óbvio que pareça ser o objeto do filme, percebemos ao longo dele que o jogador
argentino é um pretexto para que Emir Kusturica trabalhe seu real tema: ele mesmo. Intitulado, nos
primeiros segundos do filme, como “o Diego Armando Maradona do mundo do cinema”, ele compara a
vida profissional e pessoal do jogador com seus filmes e personagens, mostrando equivalências e
cogitando a possibilidade de Maradona ter interpretado não um, mas todos eles. Exibindo trechos de
filmes como Underground (1995) e Gato Preto, Gato Branco (1998), Kusturica revisa a sua obra,
transformando o documentário sobre o jogador em um manual de sua filmografia. Ele usa Maradona para
tratar de seus sentimentos, de suas angústias e de seus posicionamentos a respeito de seus filmes,
reafirmando a idéia de Samuel Butler de que toda a obra de um homem é sempre o seu auto-retrato.


*Natália Vestri é graduada em Audiovisual no Centro Universitário Senac.



boneca do Egito Antigo

O homem na multidão [Edgar Allan Poe]


"Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul."

[La Bruyère]


De certo livro germânico, disse-se, com propriedade, que "es lässt sich nicht lesen" - não se deixa ler. Há certos segredos que não consen-tem ser ditos. Homens morrem à noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores fantasmais, olhando-os devotamente nos olhos; morrem com o desespero no coração e um aperto na garganta, ante a horripilância de mistérios que não consentem ser revelados. De quan-do em quando, ai, a consciência do homem assume uma carga tão den-sa de horror que dela só se redime na sepultura. E, destarte, a essência de todo crime permanece irrevela-da.

Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do Café D. . . em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescen-ça e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o opos-to do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. O simples res-pirar era-me um prazer, e eu deri-vava inclusive inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição. Sentia um calmo mas inquisitivo interesse por tudo. Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, divertira-me durante a maior parte da tarde, ora espian-do os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas.

Essa era uma das artérias prin-cipais da cidade e regurgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multi-dão engrossou, e, quando as lâmpa-das se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfi-lavam pela porta. Naquele momen-to particular do entardecer, eu nun-ca me encontrara em situação simi-lar, e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar aten-ção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.
De início, minha observação as-sumiu um aspecto abstrato e gene-ralizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblan-te e expressão fisionômica.
Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompu-nham-se e continuavam, apressa-dos, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e ges-ticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço, interrompiam subita-mente o resmungo, mas redobra-vam a gesticulação e esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam deti-do passassem adiante. Se alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão.
Nada mais havia de distintivo sobre essas duas classes além do que já observei. Seu trajes perten-ciam aquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, nobres, comerciantes, pro-curadores, negociantes, agiotas - os eupátridas e os lugares-comuns da sociedade -, homens ociosos e ho-mens atarefados com assuntos par-ticulares, que dirigiam negócios de sua própria responsabilidade. Não excitaram muito minha atenção.
A tribo dos funcionários era das mais ostensivas, e nela discerni duas notáveis subdivisões. Havia, em primeiro lugar, os pequenos funcionários de firmas transitórias, jovens cavalheiros de roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem em-plastado e lábios arrogantes. Posta de lado certa elegância de porte, a que, à falta de melhor termo, pode-se dar o nome de "escrivanismo", a aparência deles parecia-me exato facsímile do que, há doze ou dezoito meses, fora considerada a perfeição do bon ton. Usavam os atavios des-prezados pelas classes altas - e isso, acredito, define-os perfeitamente.
A subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitá-veis era inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas, confor-táveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha direita afastada devido ao hábito de ali prenderem a caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para pôr ou tirar o chapéu e que traziam relógios com curtas corren-tes de ouro maciço, de modelo anti-go. A deles era a afetação da respei-tabilidade, se é que existe, verda-deiramente, afetação tão respeitá-vel.
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Havia muitos indivíduos de apa-rência ousada, característica da raça dos batedores de carteiras, que infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita curiosidade e achava difícil imaginar que pudes-sem ser tomados por cavalheiros pelos cavalheiros propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas, assim como o ar de excessiva franqueza que exibiam, era quanto bastava para denunciá-los de imediato.
Os jogadores - e não foram pou-cos os que pude discernir - eram ainda mais facilmente identificáveis. Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de veludo, o lenço fantasia ao pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do mais desatinado e trapaceiro dos rufiões às vestes escrupulosamente desa-dornada dos clérigos, incapazes de provocar a mais leve das suspeitas. Não obstante, denunciava-os certa tez escura e viscosa, a opacidade dos olhos, assim como o palor e a compressão dos lábios. Havia, ade-mais, dois outros traços caracterís-ticos que me possibilitavam identi-fica-los: a voz estudadamente hu-milde e a incomum extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes, em companhia desses velhacos, obser-vei outra espécie de homens, algo diferentes nos hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante. Podiam ser definidos como cavalheiros que viviam à cus-ta da própria finura. Ao que pareci-a, dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público: de um lado, os almofadinhas; de outro, os militares. Os traços distintivos do primeiro grupo eram o cabelo ane-lado e o sorriso aliciante; o segundo grupo caracterizava-se pelo sem-blante carrancudo e pela casaca de alamares.
Descendo na escala do que se chama distinção, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias. Encontrei judeus mascates, com olhos de falcão cinti-lando num semblante onde tudo o mais era abjeta humildade; atrevi-dos mendigos profissionais hostili-zando mendicantes de melhor apa-rência, a quem somente o desespero levara a recorrer à caridade notur-na; débeis e cadavéricos inválidos, sobre os quais a morte já estendera sua garra, e que se esgueiravam pela multidão, olhando, implorantes, as faces dos que passavam, como se em busca de alguma consolação ocasional, de alguma esperança perdida; mocinhas modestas vol-tando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais choro-sas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contato direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda idade: a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano, feita de már-more de Paros, mas cheia de imun-dícies em seu interior; a repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de jóias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igua-lar-se, no vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e indes-critíveis; uns, esfarrapados, camba-leando inarticulados, de rosto con-tundido e olhos vidrados; outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, de lábios grossos e sensuais, e face apopleticamente rubicunda; outros, ainda, trajando roupas que, em tempos passados, haviam sido ele-gantes e que, mesmo agora, manti-nham escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo firme, mas cujo semblante se mos-trava medonhamente pálido, cujos olhos estavam congestionados e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por entre a multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além des-ses todos, carregadores de anún-cios, moços de frete, varredores, tocadores de realejo, domadores de macacos ensinados, cantores de rua, ambulantes, artesãos esfarrapados e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies - tudo isso cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo-nos discordantemente os ouvidos e provocando-nos uma sen-sação dolorida nos olhos.
Conforme a noite avançava, pro-gredia meu interesse pela cena. Não apenas o caráter geral da multidão se alterava materialmente (seus aspectos mais gentis desapareciam com a retirada da porção mais or-deira da turba, e seus aspectos mais grosseiros emergiam com maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus antros todas as espécies de infâmias), mas a luz dos lampiões a gás, débil de início, na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascen-dência, pondo nas coisas um brilho trêmulo e vistoso. Tudo era negro mas esplêndido - como aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano.
Os fantásticos efeitos de luz le-varam-me ao exame das faces indi-viduais, e, embora a rapidez com que o mundo iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar mais que uma olhadela furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstan-te, que, no meu peculiar estado de espírito, eu podia ler freqüentemen-te, mesmo no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos.
Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subita-mente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua ex-pressão. Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de
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longe. Lembro-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzs-ch, e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do Demônio. Enquanto eu tentava, durante o breve minuto em que durou esse primeiro exame, analisar o significado que ele suge-ria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no meu espírito, as idéi-as de vasto poder mental, de caute-la, de indigência, de avareza, de frieza, de malícia, de ardor sangui-nário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo terror, de intenso e su-premo desespero. Senti-me singu-larmente exaltado, surpreso, fasci-nado. "Que extraordinária história", disse a mim mesmo, "não estará escrita naquele peito!" Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apres-sadamente o sobretudo e, agarran-do o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a tur-ba em direção ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao cabo de algumas pequenas dificul-dades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-me dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção.
Tinha agora uma boa oportuni-dade para examinar-lhe a figura. Era de pequena estatura, muito esguio de corpo e, aparentemente, muito débil. Suas roupas eram, de modo geral, sujas e esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasional-mente, sob algum foco de luz, eu podia perceber que o linho que tra-java, malgrado a sujeira, era de fina textura, e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de se-gunda mão, que ele trazia abotoada de cima a baixo, de um diamante e de uma adaga. Essas observações aguçaram minha curiosidade, e decidi-me a acompanhar o estranho até onde quer que ele fosse.
Era já noite fechada, e uma ne-blina úmida e espessa, que logo se agravou em chuva pesada, amorta-lhava a cidade. Essa mudança de clima teve um estranho efeito sobre a multidão, que logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A agita-ção, os encontrões e o zunzum de-cuplicaram. De minha parte, não dei muita atenção à chuva; uma velha febre latente em meu organismo fazia com que eu a recebesse com um prazer algo temerário.
Amarrando um lenço à boca, continuei a andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu cami-nho, com dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava gru-dado aos seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça para trás, não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma travessa que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento. Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com maior hesitação, dir-se-ia. Atraves-sou e tornou a atravessar a rua repetidas vezes, sem propósito apa-rente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada, e ele caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes havia gradualmente decrescido, tornando-se o que é ordinariamente visto, à noite, na Broadway, nas proximidades do Park, tão grande é a diferença entre a população de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um desvio de rota levou-nos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe sobre o peito, enquanto seus olhos se movi-am inquietos, sob o cenho franzido, em todas as direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre a multidão com firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver que, tendo completado o circui-to da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes; quase que deu co-migo, certa vez em que se voltou com um movimento brusco.
Nesse exercício gastou mais uma hora, ao fim da qual encontra-mos menos interrupções, por parte dos transeuntes, que da primeira vez. A chuva continuava a cair, intensa o ar tornou-se frio; os pas-santes se retiravam para suas ca-sas. Com um gesto de impaciência, o estranho ingressou num beco rela-tivamente deserto. Caminhou a-pressadamente, durante cerca de um quarto de milha, com uma dis-posição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; grande foi a minha dificuldade em acompanhá-lo. Alguns minutos de caminhada leva-ram-nos a uma grande e ruidosa feira, cujas localidades pareciam bastante familiares ao estranho, e ali ele retomou suas maneiras pri-mitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem propósito definido, por entre a horda de compradores e vendedores.
Durante a hora e meia, aproxi-madamente, que passamos nesse local, foi-me mister muita cautela para seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava galochas e podia movimentar-me em absoluto silêncio. Em nenhum momento ele percebeu que eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de artigo algum nem dizia qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos com um olhar desolado, despido de qualquer expressão. Eu estava profundamente intrigado com o seu modo de agir e firmemen-
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te decidido a não me separar dele antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu res-peito.
Um relógio bateu onze sonoras badaladas, e a feira começou a des-povoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um es-barrão no velho, e, no mesmo ins-tante, vi um estremecimento per-correr-lhe o corpo. Ele saiu apres-sadamente para a rua e olhou ansio-so à sua volta, por um momento; encaminhou-se depois, com incrível rapidez, através de vielas, umas cheias de gente, outras despovoa-das, para a grande avenida da qual partira, a avenida onde ficava situ-ado o Hotel D... Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Estava ainda brilhantemente ilumi-nada, mas a chuva caia pesadamen-te e havia poucas pessoas a vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos pela antes popu-losa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção do rio. Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por fim diante de um dos teatros principais da cidade. Este estava prestes a fechar, e os espec-tadores saíam pelas portas escanca-radas. Vi o velho arfar, como se por falta de ar, e mergulhar na multi-dão, mas julguei perceber que a intensa agonia do seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o peito nova-mente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o caminho tomado pela maio-ria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia compreender a inconstancia de suas ações.
Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando, e sua antiga inquietude e vacilação volta-ram a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco fre-qüentada. O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápi-das passadas um itinerário que nos levou aos limites da cidade, para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então atravessa-do. Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais desesperado dos crimes. A débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e arruina-dos, dispostos em tantas e tão ca-prichosas direções, que mal se per-cebia um arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavi-mento jaziam espalhadas, arranca-das de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim de-paramos com grandes bandos de classes mais desprezadas da popu-lação londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como uma lâmpada bruxule-ante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente ao do-brarmos uma esquina, um clarão de luz feriu-nos os olhos e detivemonos diante de um dos enormes templos urbanos de Intemperança: um dos palácios do demônio Álcool.
O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de alegria, o ve-lho forçou a passagem e, uma vez dentro do salão, retomou suas ma-neiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a tur-ba. Não fazia, porém, muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna re-solvera fechá-la por aquela noite. Era algo mais intenso que desespe-ro o sentimento que pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia, retomou o caminho de vol-ta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não a-bandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses. Enquanto caminháva-mos, o sol nasceu, e quando alcan-çamos novamente a mais populosa feira da cidade, a rua do Hotel D..., esta apresentava uma aparência de alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E ali, entre a confusão que crescia a cada momento, persis-ti na perseguição ao estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante o dia todo, não abandonou o turbilhão da avenida. Quando se aproxima-ram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, deten-do-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido ven-do-o afastar-se.
"Este velho", disse comigo, por fim, "é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mer-cês de Deus que 'es lässt sich nich lesn' ".

moi!

Valentino

quinta-feira, 10 de abril de 2014

frida kahlo - Casa azul

O Rio Nu

No final do século XIX, o periódico O Rio Nu inaugurou o gênero pornográfico na imprensa brasileira

Rafaella Bettamio



“Toma tento, rapariga, chupa... chupa... não mastiga!” Seria esta citação pornográfica? Pode ser. O trecho faz parte de uma das edições de O Rio Nu: periódico semanal caustico humorístico e illustrado, que trazia para a sociedade carioca os prazeres da carne e mostrava uma cidade picante, irreverente, maliciosa e escrachada. Criado em 1898 e dirigido inicialmente por Heitor Quintanilha, Gil Moreno e Vaz Simão, O Rio Nu foi a primeira publicação da imprensa brasileira destinada exclusivamente ao público masculino. O sucesso foi tanto que o jornal logo passou a circular duas vezes por semana, e manteve-se ativo por dezenove anos. Recheadas de versos, contos e desenhos provocantes, suas páginas podem ser apreciadas na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional.


Criado na virada dos anos 1900, seu humor desregrado abordava certos aspectos do cotidiano e da intimidade dos casais que, em geral, a civilização da época julgava pecaminosos. Por trazer uma boa pitada de erotismo e sensualidade em suas colunas, o jornal apresentava ao público brasileiro um novo gênero jornalístico, o pornográfico. A ousadia de suas páginas deixou alguns leitores tão perplexos a ponto de burlarem a vigilância dos funcionários para rabiscar comentários a lápis como “pouca vergonha” ou “absurdo” em alguns dos exemplares pertencentes à Biblioteca.


Apesar disso, muitos se sentiam atraídos por esse conteúdo e apreciavam o “jornaleco”. Algumas seções contavam até com a participação do público, instigado pela imaginação pecaminosa e libertadora. Uma delas era o “Concurso de resposta”, no qual o jornal apresentava um tema em versos para que seus leitores completassem o poema para a redação. Como verdadeiros poetas, os fãs do periódico enviavam suas contribuições, identificados por pseudônimos – recurso também usado pelos próprios colunistas do jornal. As melhores poesias eram publicadas, e tinham sempre temas picantes:



Para o próximo número oferecemos a seguinte pergunta:



Se aquilo lavado fica

Como novo, novo em folha,

– Como diabo é que se explica

Esse receio da rolha?



A resposta vencedora foi publicada dois números depois:



Fica novo, novo em folha.

Desde que seja lavado.

Mas da razão não se esqueça:

Se da cabeça da rolha,

Depois do caldo entornado,

Nascer um’outra cabeça?...



Os vencedores também recebiam como prêmio alguns dos contos da Bibliotheca d’O Rio Nu, publicados em brochuras produzidas e vendidas pelo próprio periódico, sendo um sucesso de vendas e se tornando bastante popular entre o público masculino. Cada um de seus volumes, de leitura reservada,continha narrativas sobre as intimidades da vida sexual de casais, além de muitas gravuras“tiradasdonatural”, traçadas a partir da nudez de mulheres reais que posavam para seus desenhistas,detalhe sempre destacado pela propaganda desses livros, veiculada no próprio periódico. Histórias como “Sandwiche”, “69” e “O menino de Gouveia” – o primeiro conto homoerótico publicado no país –sedimentaram o gênero, também conhecido como “leitura quente”.



A capa de “Sandwiche” – lançado em 22 de abril de 1916 – instigava a imaginação do leitor ao estampar o desenho de um homem de braços dados com duas moças sorridentes. Um dos diálogos entre as personagens não poderia ser mais ousado para a época:



– Vamos, meu bem, não te faças de mauzinho.

– Mas, como há de ser isso? Como escolher entre as duas?

– Não te incomodes: serás o presunto e nós o miolo de uma nova sandwiche.



O jornal ainda divulgava o já popular jogo do bicho e dava palpites para combinações promissoras. As dicas do periódico faziam tanto sucesso entre os leitores que, a partir de 1915, elas passaram a ser vistas em um caderno suplementar, O Bichinho. Outra peculiaridade de O Rio Nu estava nos seus anunciantes, que viam o público assanhado do jornal como possível comprador de seus remédios ditos milagrosos contra doenças como Gonorrheas, Syphilis e Hemorrhoidas.

Com malícia, inteligência de sobra e sem abrir mão da classe, O Rio Nu saiu na frente ao perceber que sempre houve homens dispostos a encarar, regularmente, uma boa dose de pornografia na capital da República. Mais de um século depois que o jornal foi lançado, esse contingente não para de aumentar.