domingo, 13 de abril de 2014

O homem na multidão [Edgar Allan Poe]


"Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul."

[La Bruyère]


De certo livro germânico, disse-se, com propriedade, que "es lässt sich nicht lesen" - não se deixa ler. Há certos segredos que não consen-tem ser ditos. Homens morrem à noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores fantasmais, olhando-os devotamente nos olhos; morrem com o desespero no coração e um aperto na garganta, ante a horripilância de mistérios que não consentem ser revelados. De quan-do em quando, ai, a consciência do homem assume uma carga tão den-sa de horror que dela só se redime na sepultura. E, destarte, a essência de todo crime permanece irrevela-da.

Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do Café D. . . em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescen-ça e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o opos-to do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. O simples res-pirar era-me um prazer, e eu deri-vava inclusive inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição. Sentia um calmo mas inquisitivo interesse por tudo. Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, divertira-me durante a maior parte da tarde, ora espian-do os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas.

Essa era uma das artérias prin-cipais da cidade e regurgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multi-dão engrossou, e, quando as lâmpa-das se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfi-lavam pela porta. Naquele momen-to particular do entardecer, eu nun-ca me encontrara em situação simi-lar, e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar aten-ção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.
De início, minha observação as-sumiu um aspecto abstrato e gene-ralizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblan-te e expressão fisionômica.
Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompu-nham-se e continuavam, apressa-dos, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e ges-ticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço, interrompiam subita-mente o resmungo, mas redobra-vam a gesticulação e esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam deti-do passassem adiante. Se alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão.
Nada mais havia de distintivo sobre essas duas classes além do que já observei. Seu trajes perten-ciam aquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, nobres, comerciantes, pro-curadores, negociantes, agiotas - os eupátridas e os lugares-comuns da sociedade -, homens ociosos e ho-mens atarefados com assuntos par-ticulares, que dirigiam negócios de sua própria responsabilidade. Não excitaram muito minha atenção.
A tribo dos funcionários era das mais ostensivas, e nela discerni duas notáveis subdivisões. Havia, em primeiro lugar, os pequenos funcionários de firmas transitórias, jovens cavalheiros de roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem em-plastado e lábios arrogantes. Posta de lado certa elegância de porte, a que, à falta de melhor termo, pode-se dar o nome de "escrivanismo", a aparência deles parecia-me exato facsímile do que, há doze ou dezoito meses, fora considerada a perfeição do bon ton. Usavam os atavios des-prezados pelas classes altas - e isso, acredito, define-os perfeitamente.
A subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitá-veis era inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas, confor-táveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha direita afastada devido ao hábito de ali prenderem a caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para pôr ou tirar o chapéu e que traziam relógios com curtas corren-tes de ouro maciço, de modelo anti-go. A deles era a afetação da respei-tabilidade, se é que existe, verda-deiramente, afetação tão respeitá-vel.
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Havia muitos indivíduos de apa-rência ousada, característica da raça dos batedores de carteiras, que infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita curiosidade e achava difícil imaginar que pudes-sem ser tomados por cavalheiros pelos cavalheiros propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas, assim como o ar de excessiva franqueza que exibiam, era quanto bastava para denunciá-los de imediato.
Os jogadores - e não foram pou-cos os que pude discernir - eram ainda mais facilmente identificáveis. Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de veludo, o lenço fantasia ao pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do mais desatinado e trapaceiro dos rufiões às vestes escrupulosamente desa-dornada dos clérigos, incapazes de provocar a mais leve das suspeitas. Não obstante, denunciava-os certa tez escura e viscosa, a opacidade dos olhos, assim como o palor e a compressão dos lábios. Havia, ade-mais, dois outros traços caracterís-ticos que me possibilitavam identi-fica-los: a voz estudadamente hu-milde e a incomum extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes, em companhia desses velhacos, obser-vei outra espécie de homens, algo diferentes nos hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante. Podiam ser definidos como cavalheiros que viviam à cus-ta da própria finura. Ao que pareci-a, dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público: de um lado, os almofadinhas; de outro, os militares. Os traços distintivos do primeiro grupo eram o cabelo ane-lado e o sorriso aliciante; o segundo grupo caracterizava-se pelo sem-blante carrancudo e pela casaca de alamares.
Descendo na escala do que se chama distinção, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias. Encontrei judeus mascates, com olhos de falcão cinti-lando num semblante onde tudo o mais era abjeta humildade; atrevi-dos mendigos profissionais hostili-zando mendicantes de melhor apa-rência, a quem somente o desespero levara a recorrer à caridade notur-na; débeis e cadavéricos inválidos, sobre os quais a morte já estendera sua garra, e que se esgueiravam pela multidão, olhando, implorantes, as faces dos que passavam, como se em busca de alguma consolação ocasional, de alguma esperança perdida; mocinhas modestas vol-tando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais choro-sas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contato direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda idade: a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano, feita de már-more de Paros, mas cheia de imun-dícies em seu interior; a repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de jóias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igua-lar-se, no vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e indes-critíveis; uns, esfarrapados, camba-leando inarticulados, de rosto con-tundido e olhos vidrados; outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, de lábios grossos e sensuais, e face apopleticamente rubicunda; outros, ainda, trajando roupas que, em tempos passados, haviam sido ele-gantes e que, mesmo agora, manti-nham escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo firme, mas cujo semblante se mos-trava medonhamente pálido, cujos olhos estavam congestionados e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por entre a multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além des-ses todos, carregadores de anún-cios, moços de frete, varredores, tocadores de realejo, domadores de macacos ensinados, cantores de rua, ambulantes, artesãos esfarrapados e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies - tudo isso cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo-nos discordantemente os ouvidos e provocando-nos uma sen-sação dolorida nos olhos.
Conforme a noite avançava, pro-gredia meu interesse pela cena. Não apenas o caráter geral da multidão se alterava materialmente (seus aspectos mais gentis desapareciam com a retirada da porção mais or-deira da turba, e seus aspectos mais grosseiros emergiam com maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus antros todas as espécies de infâmias), mas a luz dos lampiões a gás, débil de início, na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascen-dência, pondo nas coisas um brilho trêmulo e vistoso. Tudo era negro mas esplêndido - como aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano.
Os fantásticos efeitos de luz le-varam-me ao exame das faces indi-viduais, e, embora a rapidez com que o mundo iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar mais que uma olhadela furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstan-te, que, no meu peculiar estado de espírito, eu podia ler freqüentemen-te, mesmo no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos.
Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subita-mente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua ex-pressão. Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de
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longe. Lembro-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzs-ch, e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do Demônio. Enquanto eu tentava, durante o breve minuto em que durou esse primeiro exame, analisar o significado que ele suge-ria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no meu espírito, as idéi-as de vasto poder mental, de caute-la, de indigência, de avareza, de frieza, de malícia, de ardor sangui-nário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo terror, de intenso e su-premo desespero. Senti-me singu-larmente exaltado, surpreso, fasci-nado. "Que extraordinária história", disse a mim mesmo, "não estará escrita naquele peito!" Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apres-sadamente o sobretudo e, agarran-do o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a tur-ba em direção ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao cabo de algumas pequenas dificul-dades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-me dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção.
Tinha agora uma boa oportuni-dade para examinar-lhe a figura. Era de pequena estatura, muito esguio de corpo e, aparentemente, muito débil. Suas roupas eram, de modo geral, sujas e esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasional-mente, sob algum foco de luz, eu podia perceber que o linho que tra-java, malgrado a sujeira, era de fina textura, e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de se-gunda mão, que ele trazia abotoada de cima a baixo, de um diamante e de uma adaga. Essas observações aguçaram minha curiosidade, e decidi-me a acompanhar o estranho até onde quer que ele fosse.
Era já noite fechada, e uma ne-blina úmida e espessa, que logo se agravou em chuva pesada, amorta-lhava a cidade. Essa mudança de clima teve um estranho efeito sobre a multidão, que logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A agita-ção, os encontrões e o zunzum de-cuplicaram. De minha parte, não dei muita atenção à chuva; uma velha febre latente em meu organismo fazia com que eu a recebesse com um prazer algo temerário.
Amarrando um lenço à boca, continuei a andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu cami-nho, com dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava gru-dado aos seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça para trás, não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma travessa que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento. Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com maior hesitação, dir-se-ia. Atraves-sou e tornou a atravessar a rua repetidas vezes, sem propósito apa-rente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada, e ele caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes havia gradualmente decrescido, tornando-se o que é ordinariamente visto, à noite, na Broadway, nas proximidades do Park, tão grande é a diferença entre a população de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um desvio de rota levou-nos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe sobre o peito, enquanto seus olhos se movi-am inquietos, sob o cenho franzido, em todas as direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre a multidão com firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver que, tendo completado o circui-to da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes; quase que deu co-migo, certa vez em que se voltou com um movimento brusco.
Nesse exercício gastou mais uma hora, ao fim da qual encontra-mos menos interrupções, por parte dos transeuntes, que da primeira vez. A chuva continuava a cair, intensa o ar tornou-se frio; os pas-santes se retiravam para suas ca-sas. Com um gesto de impaciência, o estranho ingressou num beco rela-tivamente deserto. Caminhou a-pressadamente, durante cerca de um quarto de milha, com uma dis-posição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; grande foi a minha dificuldade em acompanhá-lo. Alguns minutos de caminhada leva-ram-nos a uma grande e ruidosa feira, cujas localidades pareciam bastante familiares ao estranho, e ali ele retomou suas maneiras pri-mitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem propósito definido, por entre a horda de compradores e vendedores.
Durante a hora e meia, aproxi-madamente, que passamos nesse local, foi-me mister muita cautela para seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava galochas e podia movimentar-me em absoluto silêncio. Em nenhum momento ele percebeu que eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de artigo algum nem dizia qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos com um olhar desolado, despido de qualquer expressão. Eu estava profundamente intrigado com o seu modo de agir e firmemen-
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te decidido a não me separar dele antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu res-peito.
Um relógio bateu onze sonoras badaladas, e a feira começou a des-povoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um es-barrão no velho, e, no mesmo ins-tante, vi um estremecimento per-correr-lhe o corpo. Ele saiu apres-sadamente para a rua e olhou ansio-so à sua volta, por um momento; encaminhou-se depois, com incrível rapidez, através de vielas, umas cheias de gente, outras despovoa-das, para a grande avenida da qual partira, a avenida onde ficava situ-ado o Hotel D... Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Estava ainda brilhantemente ilumi-nada, mas a chuva caia pesadamen-te e havia poucas pessoas a vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos pela antes popu-losa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção do rio. Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por fim diante de um dos teatros principais da cidade. Este estava prestes a fechar, e os espec-tadores saíam pelas portas escanca-radas. Vi o velho arfar, como se por falta de ar, e mergulhar na multi-dão, mas julguei perceber que a intensa agonia do seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o peito nova-mente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o caminho tomado pela maio-ria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia compreender a inconstancia de suas ações.
Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando, e sua antiga inquietude e vacilação volta-ram a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco fre-qüentada. O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápi-das passadas um itinerário que nos levou aos limites da cidade, para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então atravessa-do. Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais desesperado dos crimes. A débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e arruina-dos, dispostos em tantas e tão ca-prichosas direções, que mal se per-cebia um arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavi-mento jaziam espalhadas, arranca-das de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim de-paramos com grandes bandos de classes mais desprezadas da popu-lação londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como uma lâmpada bruxule-ante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente ao do-brarmos uma esquina, um clarão de luz feriu-nos os olhos e detivemonos diante de um dos enormes templos urbanos de Intemperança: um dos palácios do demônio Álcool.
O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de alegria, o ve-lho forçou a passagem e, uma vez dentro do salão, retomou suas ma-neiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a tur-ba. Não fazia, porém, muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna re-solvera fechá-la por aquela noite. Era algo mais intenso que desespe-ro o sentimento que pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia, retomou o caminho de vol-ta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não a-bandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses. Enquanto caminháva-mos, o sol nasceu, e quando alcan-çamos novamente a mais populosa feira da cidade, a rua do Hotel D..., esta apresentava uma aparência de alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E ali, entre a confusão que crescia a cada momento, persis-ti na perseguição ao estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante o dia todo, não abandonou o turbilhão da avenida. Quando se aproxima-ram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, deten-do-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido ven-do-o afastar-se.
"Este velho", disse comigo, por fim, "é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mer-cês de Deus que 'es lässt sich nich lesn' ".

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