quarta-feira, 7 de janeiro de 2015
Os diários de Tarkovski
A seguir, alguns trechos dos diários de Tarkovski (1970-1986), recentemente publicados no Brasil pela editora Realizações, em tradução direta do russo de Alexey Lázarev.
10 de maio de 1970. "Em 24 de abril, 1970, compramos uma casa em Miasnoye. Exatamente aquela que queríamos. Agora não tenho medo de nada. Se não me derem trabalho, vou ficar na casa de campo, criar porcos, gansos, cuidar de horta, e não dar a mínima para eles! Aos poucos, colocaremos a casa e o terreno em ordem e será uma grande casa de campo. De pedra. Parece que ao redor só há gente boa. Colocaremos colmeias. Teremos mel. Seria bom conseguir um jipe. Então, tudo estará em ordem. Agora tenho que ganhar mais dinheiro para terminar as obras da casa." (p. 9-10)
4 de fevereiro de 1974. "Estranha constatação: Quando se assiste a um espetáculo do chamado 'teatro do absurdo' (Beckett, Ionesco), surge uma impressão do naturalismo. Em todo caso, da perfeita verdade. Aqui está a solução do problema da verdade da arte, que é inseparável de um gênero específico. O realismo em termos de teatro é a falsidade dos filmes, e vice-versa. No cinema, o texto, os diálogos, como na vida, é refratado em todos os componentes da obram menos as próprias palavras. As palavras não significam nada, as palavras são vento. Eu não acredito no caráter 'multiestratificado' do cinema. A polifonia fílmica não nasce de uma multiplicidade de estratos, mas de um enriquecimento progressivo plano a plano, por sua sucessão e sua acumulação. E não só só isso. A polissemia da imagem reside em sua antureza intrínseca." (p. 113)
9 de julho de 1979. "Deus, que sonho bonito que eu tive! Trata-se de um dos dois sonhos que me perseguem por toda a minha vida e que não vinha tendo desde muito, muito tempo. Ele se passa em algum lugar no verão, não muito longe da casa (não me lembro dela). Tem sol, e uma leve brisa. Eu vou passear: mas vou, de alguma forma, às pressas, como se tivesse um propósito. Mas vou indo por um caminho pelo qual nunca tinha andado. E logo me encontro em um lugar formoso, maravilhoso, simplesmente paradisíaco. Flores de todos os tipos, arbustos em abundância, uma vegetação toda verde. De longe, ouvem-se alguns gritos, como se pessoas rolassem na grama, lutando e gemendo. Mas, a se julgar pelos gritos, é uma luta de vida ou morte. Eu vou pela maravilhosa estrada da floresta e, depois da curva no campo, logo ao lado da estrada, vejo crianças lutando. Crianças rústicas, do campo. À beira da estrada está sentada uma mulher jovem, que está fazendo algo. Eu digo a ela: 'Eles vão se matar'.
'Sentiu pena de quê? Será que sentiu pena pela menina ou algo assim? Vá, vá, não faz mal, não vão se matar'. Ou algo assim. Então, uma mulher idosa sai dos arbustos e joga, na grande saia da jovem, grandes frutos que não estão bem maduros. Eu continuo meu caminho. O passeio dura muito pouco; olho à direita e paro, para não cair no barranco. Em baixo há um rio largo, de águas límpidas, bonito, com uma doce ondulação. Ele é bordejado por ervas e, na outra margem, uma floresta de coníferas acolhedora me convida a entrar. Que paz, que silêncio! Como foi que nunca conheci este lugar! Eu deito na grama perto do barranco. Diante dos meus olhos (ao longo da estrada), existe a erva fresca, um prado todo coberto de flores azuis, como de linho; no fundo há uma sombra escuro depois do prado, há duas flores enormes que parecem estar perto dos meus olhos e são parecidas com as violetas que crescem na minha janela. Um velho abeto seco está na beira da floresta; e ele se destaca, mas não estraga a paisagem. Um pouco para a direita, por entre as árvores, não muito visível, aparece uma parede redonda de alguma antiga construção, ou de uma torre histórica. Ali reina o silêncio, o sol, as flores, o vento, o frio e o sossego! Estou deitado, olho para essa paisagem incrível, e sinto na minha alma a felicidade recém-descoberta!" (p. 224-226)
10 de janeiro de 1986. "Eu estou no hospital em Paris. Faz cinco dias. Fizeram as primeiras sessões (de cinco dias) de rádio e quimioterapia. As impressões são horrorosas. Em duas ou três semanas faremos ainda sessões durante mais cinco dias e, em seguida, mais quatro vezes. No que dará isso, ninguém sabe" (p. 609)
15 de dezembro de 1986. "O tempo todo estou na cama, sem poder me sentar, e tenho até mesmo dificuldade de defecar. Dor nas costas e na pélvis (nervos). As pernas não se movem. Leon não entende por que essa dor. Eu acho que é a antiga crise ciática, agravada pela química. Fazem quimioterapia. Ambos os braços doem muito. São como nevralgias. Alguns solavancos. Estou muito fraco. Vou morrer? Existe uma opção - entrar no hospital e ficar monitorado por médicos que me tratavam em Sarcelles. Hamlet! Se puder me livrar agora: 1. das dores nas costas, e depois, 2. nos braços, poderiafalar sobre uma recuperação depois da quimioterapia. Mas agora não tenho forças para nada. Aí está o problema. O negativo, cortado em muitos lugares, eu não sei por quê..." (p. 643)
Em 16 de dezembro, Tarkovski foi levado para a clínica Hartman, em Nuits-sur-Seine, onde morreu na noite de 28 para 29 de dezembro.
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